É um dois em um, mas feito de partes completamente diferentes, entre o Trouble In Tahiti de Bernstein e L’Ocasiona fa Il Ladro, de Rossini, não morando nada em comum senão parte da estrutura de um cenário que, na verdade, ganha mais sentido quando em cena entra uma obra que, estreada nos EUA em 1952, só agora foi levada a um palco por estes lados. E vale mesmo a pena ir ao São Carlos ver, finalmente, este Trouble In Tahiti.
Cruzando linguagens do seu tempo e que reflectem os universos ao seu redor, Trouble In Tahiti coloca em cena não apenas traços evidentes da identidade musical de Leonard Bernstein, como transporta para um palco de ópera uma interessante narrativa sobre a conjugalidade. Projectada na América dos cinquentas, num tempo em que a vida no subúrbio era emoldurada com tons de idílio, a ópera apresenta-nos um casal que, ao cabo de 11 anos de casamento, pouco mais parece partilhar senão os minutos de vida conjunta em casa, de noite, de manhã… E pouco mais. Concebida com uma alma quase cinematográfica, com as sucessivas cenas a evoluir como se definidas por uma montagem em paralelo, foca o fosso que se estabeleceu entre o casal. Durante o período de um dia no qual ele passa pelo escritório e ginásio e ela pelo psiquiatra e pelo cinema, cruzando-se na hora de almoço, cada qual inventando desculpa de última hora para não irem juntos a um mesmo restaurante, a narrativa cativa e partilha atenções com a música e a cenografia.
A produção apresentada, que se enquadra no programa Jovens Intérpretes, é uma bela surpresa. A orquestra esteve em forma, em pontuais instantes afogando contudo, mas nunca de forma dramática, as vozes (que deram conta do recado). Brilhante mesmo nesta produção é o trabalho de encenação, cenografia, figurinos e vídeo. Um espaço físico com alma de loja tipo Habitat, apoiado por projecções em vídeo que juntam dinamismo (e toda uma sucessão de lugares) ao contexto, é vivo palco para suportar uma música, também ela viçosa. Um certo humor corta, em instantes certeiros, o retrato do gelo de tempos difíceis de um casal. Do todo nascendo um grande momento de palco.