Mais do que nunca, importa questionar a rotina dos "debates" televisivos: em causa está a percepção dos valores democráticos e, em última instância, o funcionamento da democracia — estas alíneas retomam um texto publicado no Diário de Notícias (6 de Dezembro), com o título 'Que televisão para que democracia?'.
1. A proliferação de debates. Uma das marcas mais universais do desenvolvimento televisivo é a proliferação de debates. Pode mesmo dizer-se que, a par de “séries”, “concursos”, etc., o “debate” passou a ser um dos formatos essenciais do quotidiano televisivo. Questão universal? Sem dúvida. Mas vale a pena fixarmo-nos um pouco naquilo que tem sido a proliferação de debates nos canais portugueses.
Dir-se-ia que necessitamos de repensar a noção corrente segundo a qual a televisão existe como pólo decisivo da “cultura de imagens” em que vivemos. Esse é, aliás, um ponto comum a muitos discursos, dos mais elaboradamente teóricos aos mais desgraçadamente cor de rosa: vivemos e comunicamos num mundo de imagens! É verdade, sem dúvida. Mas não será também correcto considerar que a saturação de imagens acontece a par de uma delirante multiplicação das palavras e dos espaços (ditos) de debate?
2. O funcionamento da democracia. Desde os problemas candentes da economia planetária à mais patética discussão sobre o árbitro de futebol que não viu os trágicos centímetros de um escandaloso fora de jogo, tudo serve para juntar três ou quatro (ou dez, ou quinze) pessoas num estúdio. E não se lhes pede apenas que produzam esse milagre semiológico em que, pelos vistos, muitos profissionais de televisão continuam, ingenuamente, a acreditar: do cruzamento de discursos de todos os intervenientes (se possível, pontuado por uma gritaria abençoadamente “polémica”), surgiria uma verdade tão imaculada quanto redentora. Ao mesmo tempo, deles se espera que nos mostrem, ao vivo, o que é e como funciona a democracia.
Pois bem: funciona mal. E dispenso-me de tecer grandes considerações sobre as virtudes do diálogo e o gosto (que todos partilhamos) em desenvolver uma sociedade cada vez mais capaz de se confrontar com os seus problemas interiores. Não se trata de insinuar qualquer nostalgia pela ditadura. Trata-se, isso sim, de chamar a atenção para uma situação global (por certo com importantes excepções): ao banalizarem a formatação dos seus espaços de debate, as televisões deixaram de reflectir sobre as dinâmicas especificamente democráticas. Deixaram, acima de tudo, de se questionar sobre os modos de concepção, encenação e difusão dos debates.
3. A formatação dos discursos. Na sua obra-prima de 1928, A Paixão de Joana D’Arc, o cineasta dinamarquês Carl Th. Dreyer propõe uma fulgurante avaliação do que seja essa tensão entre a função das palavras e o poder do silêncio, entre o desejo de dizer e a violência de ser compelido a dizer. Face aos seus juízes, Joana D’Arc (a sublime Maria Falconetti) desempenha o papel visceralmente trágico de alguém que está submetido aos ditames de um sistema que, seja o que for que ela diga, já tem uma interpretação predeterminada para as suas palavras. Será preciso sublinhar que a maravilha cinematográfica de tudo isto tem também a ver com o facto de estarmos perante um filme mudo?
As televisões contemporâneas não amarram nem torturam os seus protagonistas (o que, aliás, não é certo se tivermos em conta a estupidez galopante de alguns “concursos”). Mas aplicam dispositivos que tendem a promover discursos que já estão formatados antes de serem ditos. E mesmo que cada um dos intervenientes esteja ali por sua livre vontade e no uso dos seus direitos, já era tempo de se pensar o que essa formatação está a fazer aos valores democráticos.