Há uma mão cheia de meses B Fachada confirmou, no álbum de estreia Um Fim de Semana no Pónei Dourado, que o que antes semeara nos seus interessantes EPs de apresentação (que remontam a 2007) se começava a transformar numa boa colheita. Ninguém imaginava, contudo, que meses volvidos sobre tão promissora estreia em álbum nos apresentaria, não apenas um segundo longa-duração, mas um disco com a dimensão maior deste B Fachada. E há muito que a música portuguesa não ouvia um disco de canções originais deste calibre, firme em todas as marcas autorais já antes lançadas, mas capaz de lhes acrescentar novo domínio sobre a sua arte final. Se aqui ganha forma o destino que B Fachada procurava para a sua música (e parece que sim), então este é mesmo o primeiro disco do resto da sua vida, os anteriores promovendo agora um contar de uma primeira etapa de uma história que, está visto, tem mais contos para contar… Pelo caminho não houve solavancos nem inversões de marcha. Antes o estabelecer de um rumo a caminho de um esforço de carpintaria mais delicada, trabalhando não apenas a escrita das canções com mais evidente solidez narrativa e segura construção melódica, mas também investindo em arranjos que, sem afogar as ideias, as vestem mais a primor. O álbum, a que justificadamente dá apenas o seu nome, confirma o músico como um cantautor capaz de traduzir o seu tempo e o seu universo, integrando-os numa história que não só acredita no que vem a seguir, como sabe que houve um antes que justifica, afinal, quem é B Fachada. De resto, a deliciosa citação à Queda do Império de Vitorino em A Velha Europa mostra sinais de como é da aceitação e assimilação de heranças que se define a continuidade de uma história que não começou há meia dúzia de meses… Tempo Para Cantar ou Estar À Espera ou Procurar são apenas possíveis exemplos do absoluto domínio da escrita de canções, instantes apenas numa coesa colecção de canções onde não cabe um instante menor. Estraga-se o efeito-surpresa das listinhas de fim de ano, mas está aqui encontrado o melhor disco que a produção nacional nos deu este ano!
B Fachada
“B Fachada”
Mbari
5 / 5
Para ouvir: MySpace
Nos últimos anos temos verificado como é num espaço além das fronteiras da música popular e dos universos herdeiros da tradição clássica que nascem algumas das mais interessantes entre as novas propostas em disco do nosso tempo. De um He Poos Clouds de Final Fantasy às Versailles Sessions de Murcof, de ‘IBM 1401’ de Johann Johansson ao colectivo Private Domain (ed. Naïve), não esquecendo também um Ayre de Osvaldo Golijov ou o já clássico Songs From Liquid Days, de Philip Glass, fomos somando pistas suficientes para nesse cruzamento de experiências encontrar instantes que marcam novos caminhos possíveis depois da queda de muros que antes faziam crer que os géneros viviam vidas separadas… Desiderata – A Junção do Bem, de Francisco Ribeiro, é mais uma contribuição neste domínio. E com o valor acrescentado de juntar marcas de heranças portuguesas, nomeadamente escutadas a Sul. Acompanhámo-lo, em tempos, em alguns dos mais interessantes discos dos melhores dias dos Madredeus. Na definição do que poderia ser uma pré-história deste álbum parecem estar antes momentos partilhados, ora com a Sétima Legião em Ascensão (1989) ou com Os Poetas (1997). Contudo, é de uma demanda mais recente, da descoberta de novo método de trabalho e da procura de outras referências, que nasce um disco que vive da sugestão de espaços que juntam uma estranha familiaridade a instantes de maior surpresa. Assimila-se o sinfonismo melodista de um Michael Nyman, o lirismo não obsessivo da obra mais recente de um Glass, até mesmo a noção de cenografia segundo uns Sigur Rós (e toda uma mais vasta e antiga tradição progressiva) mas projecta-se um sentido de personalidade na forma como estes dados acolhem músicas e vozes que inscrevem depois o aqui e o agora. Filipa Pais, Natália Casanova ou José Perdigão juntam-se a Fernando Ribeiro para sonhar novas formas de expressar identidade (pessoal e cultural) através da música. Com José Peixoto na guitarra. Mais a voz de Tanya Tagaq (a alargar horizontes). A Orquestra Nacional do Porto, dirigida por Mark Stephenson… E a escrita de Max Ehrmann como motivação… E do silêncio emerge um novo espírito da paz.
Francisco Ribeiro
“Desiderata – A Junção do Bem”
Multi
4 / 5
Para ouvir: MySpace
Começou por ser apresentado como um “extra” num repackage do seu álbum de estreia, The Fame. Mas na verdade há mercados que apresentam igualmente The Fame Monster como edição independente, justificando-se assim a sua designação como segundo álbum de Lady GaGa (afinal tem oito canções e, durante anos a fio, nos dias do vinil, não foram poucos os álbuns com semelhante soma de faixas no alinhamento final). Se The Fame (2008) chamou atenções, garantindo à nova-iorquina o estabelecimento de uma sólida base de admiradores (que vai já na casa dos milhões), The Fame Monster alerta-nos para o facto de, entre a nova geração de figuras que a pop nos deu a conhecer neste final de década, aqui reside um nome que poderá ter dimensão de facto global nos anos dez (que estão a menos de um mês de distância). The Fame (assim como os seus telediscos e concertos) já dera conta de uma personalidade que tanto partilha afinidades com as heranças glam de um Bowie como com a versatilidade pop (com ligações à cultura da dança) de uma Madonna. The Fame Monster junta não apenas novos olhares e referências, mas também um sentido de assombração, num alinhamento que essencialmente reflecte sobre o lado escuro da fama, o “monstro” de que afinal se fala (Dance In The Dark, por exemplo, alude explicitamente ao destino trágico de figuras como Marilyn Monroe ou Judy Garland). Bad Romance, a jóia da nova coroa, é talvez a sua mais sólida canção até à data, com sabor a Boney M no refrão, mas alma sombria de Depeche Mode, fase Black Celebration, evidente em registos de sintetizadores que se escutam perto do final da canção. Alejandro junta Abba e Ace Of Base, no sucessor de La Isla Bonita que Madonna não conseguiu criar em Spanish Lesson. Por seu lado, Speechless pisca o olho às baladas glam de Bowie… Co-autora dos temas, Lady GaGa vinca personalidade a cada instante, suplantando a sua presença ao poder do produtor; marca de resto partilhada por outras figuras como Annie ou Robyn, vincando a vontade em ditar ponto final a uma etapa em que os destinos da pop fugiram para quem mexia nos botões, no outro lado do vidro do estúdios. The Fame Monster é um dos acontecimentos pop de 2009. E, somando as novas canções ao que conquistara com The Fame, um aviso para Madonna. Ao cabo de 25 anos de reinado, a “rainha” tem finalmente uma séria concorrente…
Lady GaGa
“The Fame Monster”
Interscope / Universal
4 / 5
Para ouvir: MySpace
Raymond Raposa, natural de San Diego (Califórnia) vive hoje em Portland no Oregon, e pela sua música passam mais as melancolias das brumas do Norte que as memórias da luz e vizinhança latina do seu berço… É um nome com história feita entre os demais protagonistas do movimento freak folk de meados desta década. E é também a única presença fixa no projecto Castanets (castanholas, portanto), que este ano lança o seu quinto álbum (sexta se considerarmos What Kind Of Cure, de 2003, na soma). Texas Rose, the Beasts, and the Thaw é um disco contemplativo, com alma apontada a uma noção de América profunda (com evidente familiaridade com espaços da country), procurando contudo a exploração de novas telas para projectar essas mesmas visões de vastidão e placidez rural. Apesar dos momentos em que o músico enfrenta heranças country sem filtro, o disco traduz uma vez mais um interesse de Raymond Raposa pela criação de texturas que assim transformam as paisagens nas quais evoluem as canções. Texturas que não decorrem apenas de manobras de manipulação electrónica, convocando também a electricidade (como se escuta em No Trouble) ou discretas incursões por heranças da música concreta (como em Thaw and the Beasts). Porém, é nos instantes em que a cultura laptop se junta às demandas em torno de ecos remotos que o disco ganha outra dimensão. Momentos que se revelam ora na procura de formas em We Kept Our Kitchen Clean and Our Dreaming Quiet ou Ignorance Is Blues (esta a piscar o olho aos registos ambient) ou na canção para horizontes vastos (escola Granddaddy) que se descobre em Lucky Old Moon.
Castanets
“Texas Rose, The Thaw and The Beasts”
Asthmatic Kitty / Popstock
3 / 5
Para saber mais: site da editora
É impossível contar a história da música popular dos noventas sem mencionar a presença de Tricky. Natural de Knowle West (Bristol, Reino Unido), integrou o mítico colectivo The Wild Bunch e, mais tarde, os Massive Attack, com os quais colaborou activamente nos dois primeiros álbuns. Com uma carteira de canções suas, decidiu avançar em nome próprio, estreando-se em 1995 com Maxinquaye, álbum que não se limitava a alimentar o filão trip hop que da cidade de Bristol levava então boas novas ao mundo, juntando às suas visões uma vivência ecléctica que tanto partilhava interesses pela cultura hip hop como pelo reggae e dub. Os anos zero não foram para Tricky um mar de rosas, o seu nome progressivamente perdendo notoriedade e projecção após uma sequência de discos claramente menores (que remontam alguns deles a finais de 90). O álbum do ano passado, Knowle Wet Boy parecia indiciar um renascimento, acabando mesmo reconhecido como talvez o seu melhor disco desde os dias de Maxinquaye e Pre-Millenium Tension (1996). Um ano depois algumas das canções desse álbum surgem em novas leituras, sob a acção do colectivo (natural da Florida) South Rakkas Krew. Sem estreitar as transformações num único caminho (como de resto o fazia já o álbum do ano passado), as novas remisturas não fazem o milagre da cosmética, mas abrem interessantes pontos de vista à música de Tricky. Se por um lado bleeps acid de cruzam com o que parece ser herança natural do “efeito” Buraka Som Sistema em Far Away (sob o curioso tempero de discreta sugestão pontual do som de uma steel band), tons de luz pop emergem em Numb ou em nova abordagem a Slow (sim, o de Kylie Minogue). Já a nova leitura de Bacative, que abre o disco, parece estabelecer pontes com a memória remota dos primeiros discos. Interessantes novas visões, portanto. Restando saber se Tricky as assimila no próximo capítulo...
Tricky
“Tricky meets South Rakkas Crew”
Domino / Edel
3 / 5
Para saber mais: site da editora
Também esta semana:
Pixies (caixa), Spiritualized (reedição), Sparks (ed especial vinil), Manu Chao, Blakroc, Rolling Stones (reedição), Atlantic Records (antologia), Foo Fighters, The Cinematics, Morrissey (caixa), Ella Fitzgerald (caixa), Oscar Peterson (caixa)
Brevemente:
7 de Dezembro: Três Cantos, Echo & the Bunnymen (live), Paul McCartney (CD + DVD), Timbaland, Cluster (reedição), Roxy Music (live), The Beatles (USB)
14 de Dezembro: Animal Collective (EP), Pet Shop Boys (EP), Sonic Youth
21 de Dezembro: Okkervil River (reedição), Buddy Holly (antologia), Jacques Brel (antologia), Dave Matthews Band
Dezembro: Rolling Stones (reedição), Joni Mitchell (reedições), Cluster, Judy Garland (live)
Janeiro 2010: Vampire Weekend, Final Fantasy, Magnetic Fields, William Orbit, Laura Veirs, Lindstrom + Christabelle, Philip Glass
PS. O texto sobre Francisco Ribeiro é uma crítica publicada na revista NS a 28 de Novembro