RENÉ MAGRITTE
O Princípio do Prazer, 1937
O Princípio do Prazer, 1937
A televisão é uma impressionante máquina de refazer o quotidiano e também de reconfigurar a democracia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 de Dezembro), com o título 'Notícias democráticas'.
1. Descubro a promoção de Pontapé de Saída (RTP-N), programa de actualidades futebolísticas. Que João Vieira Pinto seja encenado como clone do Braverheart, de Mel Gibson, eis o que não surpreende: a nossa sociedade já não reconhece heróis, a não ser nos jogadores de futebol ou nas vítimas do Big Brother. Espantoso é o modo de apresentação do comentador Luís Freitas Lobo [foto]: em ambiente escuro, quase filme de terror, apenas com um candeeiro sobre a mesa de trabalho, vêmo-lo folhear livros com intrigantes fórmulas matemáticas. As imagens dizem pouco sobre o comentador (cujas qualidades não estão em causa), mas são muito reveladoras da cultura televisiva do livro: em boa verdade, o livro só adquire contornos de seriedade se surgir associado ao... futebol.
2. Subitamente, nos noticiários (nacionais e estrangeiros), o cinema surge reduzido a uma única referência: a estreia de Avatar, de James Cameron [foto]. A avalancha informativa reflecte uma verdade que quase ninguém questiona: só os blockbusters americanos adquirem visibilidade automática nos ecrãs de todo o mundo. Não está em causa aquilo que o filme possa ser enquanto objecto específico de cinema (será preciso recordar que a história dos blockbusters inclui algumas obras-primas?). Está em causa, isso sim, a inércia jornalística: entre dezenas de lançamentos importantes, repartidos por quase todas as semanas, porque é que apenas os filmes com grandes campanhas são motivo de notícia? Noticiam-se os filmes ou as campanhas?
3. Um extraterrestre que tenha acabado de desembarcar em Portugal interrogar-se-á: as televisões são todas da oposição? De facto, predominam notícias e especulações cujo subtexto é: José Sócrates [foto] e o seu Governo voltaram a fazer algum disparate... Não é, entenda-se, qualquer cabala contra o Partido Socialista. Nem sequer é uma estratégia ideológica. Trata-se mesmo de um processo tendencialmente irracional (que, aliás, formalmente, decalca o que aconteceu quando Pedro Santana Lopes foi primeiro-ministro). O que importa é sugerir que quem está no poder é um agente do caos. Tudo isso, claro, em nome do mais puro amor pela democracia. Não nos alarmemos, portanto, que vem aí a novela.