Para avaliarmos a lógica industrial e o papel económico de Avatar, será preciso superar a dicotomia pueril do "pró & contra". Importará, em particular, questionar a acção (ou a inacção) da Europa na integração do digital nos mercados — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 de Dezembro).
Sou dos espectadores desiludidos com Avatar, de James Cameron. A desilusão é tanto maior quanto continuo a considerar o cinema americano uma vanguarda fundamental das imagens contemporâneas, em vários aspectos mais ousada e estimulante que alguns sectores da produção europeia. Vejo o filme como uma data marcante para um fascinante desafio tecnológico (a hipótese de um “novo cinema” a três dimensões), mas também como um exercício narrativo convencional que, por estranho paradoxo, não pensa as implicações do 3-D nos parâmetros cinematográficos do espaço e do tempo.
Mas há algo que transcende as especificidades de qualquer juízo de valor e que, uma vez mais, vale a pena tentar discutir. A saber: as relações entre produção americana e mercado europeu. E também: o modo como as opções de Hollywood condicionam a vida comercial do cinema na Europa.
A integração do digital no cinema já deixou de ser uma curiosidade mais ou menos esotérica, envolvendo um conjunto de instrumentos e práticas que estão a mudar todos os parâmetros cinematográficos, desde a produção ao consumo. Nessa dinâmica, o 3-D representa um factor nuclear, já que altera o contexto de produção de qualquer labor criativo, afectando, em última instância, os hábitos dos espectadores.
Há uma pergunta que não vejo ninguém formular: como é que a complexa e dispendiosa adaptação de milhares de salas ao 3-D está a ser gerida, tanto em termos económicos como culturais? Porque a questão é esta: sendo o 3-D uma “urgência” da indústria cinematográfica americana, como é que a Europa equacionou os seus próprios interesses face a tão profunda alteração estrutural?
Repare-se: nada disto tem a ver com a valor particular que possamos atribuir a Avatar. Mesmo sendo uma obra-prima, o problema teria exactamente os mesmos contornos. O que está em causa é o modo como as instâncias económicas, culturais e políticas encaram o facto de passarem a ter um parque de distribuição/exibição marcado por uma novidade tecnológica (o digital) que, pelo menos formalmente, não está a ser gerida por nenhuma estratégia especificamente europeia. Tendo em conta as mais salutares práticas negociais, será que a Europa soube exigir algum tipo de contrapartidas aos EUA, por exemplo criando novas condições para a difusão dos filmes europeus nas salas americanas?
Infelizmente, não há respostas nítidas a nenhuma destas dúvidas. E se é legítimo perguntar se Avatar está contra o cinema europeu, talvez sejamos levados a responder que o cinema europeu está... contra si próprio. Aliás, esse cinema, tão recheado de maravilhas que muitos espectadores europeus desconhecem, não tem sequer programas político-culturais para dar visibilidade mediática aos seus grandes acontecimentos. Exemplo? A placidez com que passaram os Prémios do Cinema Europeu (12 de Dezembro), ironicamente chamados os “Oscars” europeus, consagrando esse filme fabuloso que é O Laço Branco [cartaz], de Michael Haneke (estreia portuguesa: 14 de Janeiro). Sabemos que alguns meios de comunicação, com inevitável destaque para as televisões, estão mais empenhados em dar a conhecer James Cameron do que Haneke. Seja como for, isso não invalida o essencial: a fragilidade das políticas de defesa do cinema europeu não se corrige demonizando jornalistas e críticos.