domingo, novembro 15, 2009

Em conversa: António Pinho Vargas (5)

Quinta (e última) parte da apresentação de uma entrevista com António Pinho Vargas que serviu de base a uma entrevista publicada no DN a 26 de Outubro com o título ‘Um ciclo de álbuns que abriu novos caminhos’.


Continuando a falar dessas relações entre 'tribos', Leonard Bernstein, por exemplo, é para alguns, na área da música clássica, mais reconhecido como maestro que como compositor...
Ao longo da minha vida fui coleccionando frases de rejeição dos núcleos duros. Uma delas surgiu num concerto integrado no ciclo Morton Feldman no São Carlos. O Remix Ensemble fez um concerto com duas peças dele e na segunda parte foi tocada a Sinfonia de Câmara do John Adams... Estava uma senhora chamada Marianne Lyon, que é coordenadora do centro de documentação musical europeu e directora do centro de documentação musical da música contemporânea francesa. No fim da peça do John Adams, que acho uma peça extraordinária, ela disse: “mais ça c’est épouvantable” (é horrível). E a seguir diz: para isto prefiro “du Bernstein”! Isto é de tal maneira mau que prefiro o Bernstein, que é uma definição do mau! Que é foleiro, popular... Este núcleo duro, especialmente europeu, especialmente francês, por e simplesmente não aceita. Os americanos têm em relação aos europeus a vantagem de terem menos peso da tradição para trás. Não têm passado. Estão-se nas tintas para os complexos dos europeus e avançam. Isto começa logo com o Charles Ives no princípio do século XX.

E é aí que nasce uma outra América em termos musicais…
De uma certa maneira... Como autónoma. É um país onde este peso da “grande”, os “grandes mestres”... O europeu fica assustado. Ela pertence a uma das tribos mais intolerantes. E compara a peça do John Adams ao que lhe parece o pior: prefiro Bernstein. Que é bom para mim. Mas não para ela. Para ela é música ligeira.

Expressão que quase caiu em desuso…
Recentemente falei sobre música ligeira sobre o meu professor em Inglaterra. Ele disse-me que em Inglaterra ninguém usa a expressão. Rock, pop, world... Agora light music?... Quem é que a usa? Alguns membros da SPA porque, sendo eles próprios praticantes da música que consideram ligeira não se sentem ofendidos com isso. Na música clássica usa-se frequentemente o termo para designar tudo o que não é música daquela tradição. Há um lance intelectual subtil nesta coisa. É que ao considerar que AC/DC ou o Carlos Zíngaro a improvisar são música ligeira, como já ouvi, é um total paradoxo, uma miopia cultural. O lance intelectual por trás disto coloca a pessoa que usa essa designação no topo de uma pirâmide hierárquica. Ao exprimir-se dessa maneira colocam-se no topo dessa pirâmide. Isto é um processo naturalizado. Alguns têm… terão reflectido sobre esta questão nestes termos. Mas este tipo de pensamento está naturalizado. E esta é uma parte importante daquilo que tribalza. Que traça fronteiras.

Como vê a Internet? Dá-lhe uma nova capacidade para apreender o mundo. É ponto de partida?
É um ponto de partida para tomar conhecimento com quase tudo. Às vezes faço esta multiplicação. Pego numa pen e digo a amigos, que não tarda muito para poder ter numa pen toda a cultura do mundo. Às vezes é necessário fazer escolhas.

Tem estado a trabalhar na sua tese…
O título é Música e Poder. E o subtítulo, Para uma sociologia da ausência da música portuguesa.

O que nos pode dizer desse seu trabalho, mesmo antes de ser publicamente apresentado?...
Em relação à tese estou numa fase de melancolia, porque acabei o trabalho. É como se tivesse acabado uma peça, sinto-me triste. Acabou uma coisa à qual dediquei o meu tempo durante quatro anos. A tese chama-se Música e Poder porque a vida musical, quer em Portugal, quer nas relações de Portugal com a Europa, é regulada por relações de poder desigual. Este é o primeiro aspecto. Há uma estrutura de poder nos países centrais que domina amplamente em relação aos países periféricos da Europa. Não é apenas uma questão que afecte Portugal. Afecta por exemplo a Irlanda. Por outro lado, outro aspecto importante da minha tese é que as estruturas mentais, os valores, as convicções, as crenças, produzidas pela grande histórica canónica da música de que falamos, esses valores estão disseminados e regulam todas as práticas culturais musicais, quer ao nível do ensino quer da programação das instituições quer até da encomenda de obras. E esta é a parte mais difícil de explicar numa frase... Porque para ser compreendido isto implica a leitura da tese no seu todo e são quinhentas e tal páginas... As relações de poder desigual entre os países centrais da Europa e Portugal reproduzem-se no interior de Portugal, desqualificando a própria produção interna. São os portugueses os primeiros produtores da ausência de música portuguesa.