sábado, novembro 07, 2009

Em conversa: António Pinho Vargas (3)

Terceira parte da publicação de uma entrevista com António Pinho Vargas que serviu de base a uma entrevista publicada no DN a 26 de Outubro com o título ‘Um ciclo de álbuns que abriu novos caminhos’. Esta entrevista vai ser aqui publicada ao longo dos próximos fins de semana.

Os caminhos que algum jazz tomou nos anos 90 terão propiciado essas mudanças [ver parte 2 da entrevista] que se têm verificado nos últimos tempos? Ver um Brad Mehldau a tocar Radiohead foi importante? Bom, mas na ECM já havia esse tipo de ligações desde os anos 80...
Evidentemente. Mas não eram americanos!... Esse alargamento para muitos músicos claramente competentes na área do jazz – como o Brad Mehldau, extraordinário músico, e não é caso único – terá provocado uma reflexão nalguma rigidez que terá havido antes. E algumas pessoas terão reequacionado os seus valores. Porque é outra vez o vento lá fora. É a realidade do que se faz a obrigar a pensar... Muitas vezes o artista deixa perplexo o receptor. E precisa às vezes de tempo.

Isso é, de resto, recorrente ao longo de toda a história da música, em todas as épocas...
E em todas as áreas... Não nos podemos esquecer que o Charlie Parker levou, depois de um período de reflexão, o crítico francês Hugues Panassié a pensar se era jazz ou não. E depois decretou que não era jazz... (risos) É evidente que se enganou redondamente. E ficou com uma espécie de boutade do ridículo que é a rigidez da identidade, como diz o Amin Malouf, assassina. Que é tentar colocar uma coisa numa tal fronteira dentro de certas fronteiras que se procura estabelecer de uma forma muito clara e muito rígida. E depois a realidade explode...

Faz sentido hoje em dia falar de géneros de uma forma tão estrita como em tempos se fazia? Veja-se o caso de um Ambrose Field... É música medieval? É electrónica? É fora das fronteiras que estão a acontecer os grandes desafios da música?
É evidente que há gente que continua a trabalhar dentro das diversas zonas de mainstream... O jazz, a música contemporânea da tradição serial ou pós-serial ou qualquer coisa do género... Mas há cada vez mais uma proliferação de experimentações de diversa ordem, de encontros inusitados. E se às vezes os resultados não são propriamente extraordinários, por outro às vezes há surpresas incrivelmente estimulantes. Julgo que isso tem a ver com um processo de cruzamento de conhecimentos e de esbatimento de formações. Por exemplo, o Brad Mehldau claramente é um intelectual. É um homem que estudou Brahms e Liszt, e no seu disco de piano solo, que é maravilhoso, fala do conceito de elegia e vai falar do romantismo alemão. Um músico de jazz ter este tipo de interesses há 40 anos seria impensável. De uma certa maneira o Bill Evans interessava-se pela música de Debussy, de Ravel, pelo impressionismo. É um grande músico, evidentemente, mas não teria sido capaz de elaborar esse tipo de reflexão que, naturalmente, conduz ao seu universo... Porque, em última análise, a perspectiva é: tudo o que vier à rede me interessa. Eu estou aberto ao mundo. Falando de mim... Muitas vezes estou em casa a tocar e aquilo segue uma direcção. E aquilo segue uma certa direcção. E num dado momento estou a fazer uma coisa que nunca tinha feito, e estou a pensar: isto é interessante, é bom, penso eu na minha imodéstia... Quando se descobre coisas o fascínio é uma cosa exaltante. É quase como a chamada composição que eu às vezes digo milagrosa. Num dado momento estou a tocar ao piano uma coisa de Debussy ou Bach e de repente começo a compor e no fim há uma música que se chama Tom Waits... E eu não sei o que se passou pelo meio, mas ela existe. E digo milagroso porque não posso reconstituir o processo de pensamento. Foi uma coisa que saiu do acto de tocar, naturalmente tocada e pensada ao mesmo tempo... Que fluiu com uma tal velocidade que no fim existe uma composição.

Perante o mundo de possibilidades que existe à nossa volta corremos o risco de nos perdermos? Ou é bom podemo-nos perder?
Embora existam todos estes processos, nem tudo vai a par. Ou seja, há processos de carácter institucional e há tribos, pequenos mundos, muito fechados em relação a qualquer exterior. Eu devo dizer que poucas pessoas terão tanto esta consciência como eu por razões de ordem biográfica. Lembro uma pequena história. Nos anos 90, quando vim da Holanda, tinha o meu grupo ainda a funcionar. Fazia às vezes concertos com o Zé Nogueira em duo. E procurava espaçar a estreia de uma peça minha na Gulbenkian ou outro sítio qualquer... E falei disso com o António Miguel Guimarães, que era o meu agente. E ele disse-me uma coisa que na altura desconfiei fortemente que ele tivesse razão. Disse-me que não me devia preocupar muito com isso porque são universos que quase não têm nenhum contacto entre si... Na altura achava que ele estava errado e hoje acho que está certo. Eu na altura tinha uma perspectiva diferente do mundo... Hoje vou a um concerto de música contemporânea e muito raramente encontro um músico de jazz que conheça. Vou ver um concerto de jazz e ficarei muito surpreendido, e às vezes fico, quando encontro um dos meus antigos alunos de composição ou um dos meus colegas compositores portugueses. Isto quer dizer que cada tribo só presta atenção ao seu mundo e considera o lá fora inexistente.

(continua)