Stockhausen deixou uma herança que, sendo visceralmente musical, se cruza com o mundo das imagens e, em particular, com a expressão cinematográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 de Outubro), com o título 'A música visual de Karlheinz Stockhausen'.
O recente Ciclo Stockhausen, na Fundação Gulbenkian, teve também uma importante componente cinematográfica. Ou melhor: uma fascinante dimensão visual. Bastará recordarmos a derradeira composição apresentada: Cosmic Pulses (13ª hora do ciclo Klang) desenvolve-se como um labirinto de sons que, literalmente, circulam pelo auditório perante um palco vazio e rigorosamente negro; a única “coisa” visível nasce de um projector que se cristaliza num pequeno círculo luminoso, ao centro sobre as cortinas, desenhando algo que tanto pode ser a nitidez do “zero” como a janela de um vitral de um templo sem arquitectura definida (a não ser aquela que construímos no interior da nossa própria cabeça).
O sentido de pesquisa e o gosto de experimentação de Karlheinz Stockhausen (1928-2007) não podem ser dissociados da vontade de “visualizar” as suas músicas. Num dos filmes apresentados na Gulbenkian, Interview with Stockhausen (2007), de Olivier Assayas, descobrimo-lo mesmo a sugerir modos de encenação de um bailado construído a partir da sua composição Sonntags Abschied: em diálogo com o coreógrafo Angelin Preljocal, Stockhausen avalia questões muito concretas de encenação, visando sempre uma obstinada dimensão espiritual e uma ideia radical e libertadora a que, nessa conversa, dá o nome fora de moda de “paraíso”.
Escusado será sublinhar que a peculiar energia criativa de Stockhausen procurava também novos modos de relação com o espectador (desencadeando novas atitudes de escuta) e, no limite, conceitos alternativos de palco e interpretação. No filme Stockausen in den Höhlen von Jeita (1969), de Anne-Marie Deshayes, podemos acompanhar a extraordinária experiência de fazer música nas lendárias grutas de Jeita, no Líbano, transfigurando o surrealismo (?) de um espaço natural numa inusitada sala de concertos. A experiência mais extrema e, por assim dizer, mais extremista surge na célebre composição de Stockhausen para... helicópteros! A sua preparação e execução está registada num filme que é, para todos os efeitos, um pequeno prodígio de cinema documental: Helicopter String Quartet (1996), de Frank Scheffer, acompanha o incrível trabalho de montagem de uma performance [foto] que coloca cada um dos elementos do Quarteto Arditti num helicóptero, voando pelos céus de Amsterdão. Dir-se-ia que assistimos à concretização de um projecto de engenharia mecânica (e sonora) que se vai transfigurando num envolvente acontecimento poético.
A certa altura, no filme de Scheffer, Stockhausen refere o facto de o ruído dos helicópteros integrar o registo da peça musical. E não o faz, como é óbvio, lamentando a sua “intromissão”: o conceito da peça pressupõe a integração de tal ruído. Mais do que isso: Stockhausen proclama o desejo de apropriar os ruídos do mundo na sua música, em última instância encarando (ou habitando) o mundo como uma gigantesca composição musical. Tal atitude atribui ao artista um estatuto que, em tudo e por tudo, contraria a imagem “tradicional” do eremita mais ou menos fechado no seu território criativo. Stockhausen encara o mundo, não como o receptáculo da sua arte, mas sim como o território que importa ocupar, devolvendo-o à singularidade dos gestos artísticos. Músico, arquitecto, visionário.
O recente Ciclo Stockhausen, na Fundação Gulbenkian, teve também uma importante componente cinematográfica. Ou melhor: uma fascinante dimensão visual. Bastará recordarmos a derradeira composição apresentada: Cosmic Pulses (13ª hora do ciclo Klang) desenvolve-se como um labirinto de sons que, literalmente, circulam pelo auditório perante um palco vazio e rigorosamente negro; a única “coisa” visível nasce de um projector que se cristaliza num pequeno círculo luminoso, ao centro sobre as cortinas, desenhando algo que tanto pode ser a nitidez do “zero” como a janela de um vitral de um templo sem arquitectura definida (a não ser aquela que construímos no interior da nossa própria cabeça).
O sentido de pesquisa e o gosto de experimentação de Karlheinz Stockhausen (1928-2007) não podem ser dissociados da vontade de “visualizar” as suas músicas. Num dos filmes apresentados na Gulbenkian, Interview with Stockhausen (2007), de Olivier Assayas, descobrimo-lo mesmo a sugerir modos de encenação de um bailado construído a partir da sua composição Sonntags Abschied: em diálogo com o coreógrafo Angelin Preljocal, Stockhausen avalia questões muito concretas de encenação, visando sempre uma obstinada dimensão espiritual e uma ideia radical e libertadora a que, nessa conversa, dá o nome fora de moda de “paraíso”.
Escusado será sublinhar que a peculiar energia criativa de Stockhausen procurava também novos modos de relação com o espectador (desencadeando novas atitudes de escuta) e, no limite, conceitos alternativos de palco e interpretação. No filme Stockausen in den Höhlen von Jeita (1969), de Anne-Marie Deshayes, podemos acompanhar a extraordinária experiência de fazer música nas lendárias grutas de Jeita, no Líbano, transfigurando o surrealismo (?) de um espaço natural numa inusitada sala de concertos. A experiência mais extrema e, por assim dizer, mais extremista surge na célebre composição de Stockhausen para... helicópteros! A sua preparação e execução está registada num filme que é, para todos os efeitos, um pequeno prodígio de cinema documental: Helicopter String Quartet (1996), de Frank Scheffer, acompanha o incrível trabalho de montagem de uma performance [foto] que coloca cada um dos elementos do Quarteto Arditti num helicóptero, voando pelos céus de Amsterdão. Dir-se-ia que assistimos à concretização de um projecto de engenharia mecânica (e sonora) que se vai transfigurando num envolvente acontecimento poético.
A certa altura, no filme de Scheffer, Stockhausen refere o facto de o ruído dos helicópteros integrar o registo da peça musical. E não o faz, como é óbvio, lamentando a sua “intromissão”: o conceito da peça pressupõe a integração de tal ruído. Mais do que isso: Stockhausen proclama o desejo de apropriar os ruídos do mundo na sua música, em última instância encarando (ou habitando) o mundo como uma gigantesca composição musical. Tal atitude atribui ao artista um estatuto que, em tudo e por tudo, contraria a imagem “tradicional” do eremita mais ou menos fechado no seu território criativo. Stockhausen encara o mundo, não como o receptáculo da sua arte, mas sim como o território que importa ocupar, devolvendo-o à singularidade dos gestos artísticos. Músico, arquitecto, visionário.