Hoje em dia, em televisão, o alarmismo deixou de ser um limite; impôs-se como um "estilo". As abordagens da recente tragédia na praia Maria Luísa, no Algarve, permitem perceber isso mesmo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 de Agosto), com o título 'A televisão que gosta de catástrofes'.
Tenho visto, ao longo dos últimos dias, as imagens televisivas da praia Maria Luísa, no Algarve, e há algo que transcende a tragédia e o sofrimento das pessoas. Tem a ver com um incómodo subtexto que as palavras arrastam e que já tinha pressentido quando ouvi as primeiras notícias na rádio (o que prova que se trata de qualquer coisa que passa muito pelo que se diz e, sobretudo, pelo modo de o dizer). Poderemos chamar-lhe: atracção pela catástrofe.
Não se trata, entenda-se, de sugerir que, individualmente, os jornalistas televisivos são insensíveis ou sádicos. Trata-se, isso sim, de observar que o dispositivo informativo da televisão integrou o consumo do desastre e da dor. Com um complemento eminentemente político: a procura automática de “culpados” para qualquer acidente. Desta vez, até podemos recordar que não há nenhum determinismo maniqueísta nas formas da natureza. No DN de domingo, dia 23 [primeira página aqui ao lado], surgiam estas linhas de rudimentar sensatez: “O próprio presidente do Instituto da Água, Orlando Borges, admitiu ontem que os processos de avaliação das arribas do litoral “são de enorme complexidade” e acidentes como o registado ontem na praia Maria Luísa, em Albufeira, são “fenómenos de imprevisibilidade”.” Seja como for, em alguns casos, o modo como se mostra, as descrições que se fazem e as insinuações que se favorecem empurram-nos para uma lógica de “tribunal popular”. Como quem pergunta: “Não será que o Governo é culpado de tudo isto?”
Bem sei que sugerir tal coisa pode atrair outro tipo de insinuação: a de que alguma informação televisiva estaria a promover a difamação do actual Governo. De facto, o que estou a tentar compreender não tem nada a ver com isso, quanto mais não seja porque outros governantes, de outras cores políticas (recordo o caso de Pedro Santana Lopes, como primeiro-ministro), já foram sujeitos ao mesmo processo de desgaste mediático. O que se passa é que há modos de fazer televisão que parecem apostados em promover um caos ridiculamente pueril: quando algo de negativo acontece, não só é preciso encontrar de imediato “culpados”, como a “culpa” só pode ser de quem governa (seja quem for!).
Repare-se: este está longe de ser um método que tenha a cena política como alvo único. O permanente alarmismo tornou-se uma verdadeira forma de histeria mediática que tende a contaminar muitas zonas da vida social. Basta ver o que, continuamente, acontece na abordagem do futebol. Num país assolado por uma complexa crise económica, ninguém lança um debate sobre o projecto (absurdo, a meu ver) de envolver Portugal na organização do Mundial de Futebol de 2018. Em todo o caso, todas as semanas, promovem-se discussões delirantes sobre os cartões que o árbitro X ou Y mostrou e não mostrou...
Dir-se-ia que nos querem condenar a viver numa espécie de pesadelo simétrico ao da personagem de Jim Carrey no filme The Truman Show/A Vida em Directo (1998), de Peter Weir [cartaz do filme]. Aí, a televisão colocava-o num cenário artificioso e idílico, fabricado para ser confundido com uma realidade espontânea, não manipulada. Agora, massacram-nos com uma realidade que é sempre feia, suja, degradada e catastrófica. Depois, fazem concursos para nos lembrarem que somos muito felizes.