Que sentido faz "obrigar" os jogadores de futebol a serem paradigmas de heroísmo? Já não é possível saborear o futebol com toda a sua imprevisibilidade e também a inevitável mistura de vitórias e derrotas? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 de Agosto), com o título 'O "heroísmo" mediático de Rui Patrício'.
Já lá vai mais de uma semana. Mas os ecos mediáticos do apuramento do Sporting para o play-off da Liga dos Campeões continuam a justificar alguma atenção. É bem verdade que o final do jogo Twente-Sporting foi espectacular. E espectacularmente saboroso. Já passava dos 90 minutos e o resultado (1-0) colocava a equipa portuguesa fora da competição: só um golo resolveria a questão. Surge, então, um canto a favor dos leões e o guarda-redes, Rui Patrício, decide ir lá à frente tentar a sorte… De tal modo que consegue atrapalhar a defesa dos holandeses: a bola é desviada e, num desconcertante autogolo, dá o empate ao Sporting e a vitória na eliminatória.
Dito isto, que sentido faz a ligeireza com que Rui Patrício foi transformado em “herói”? De facto, o Sporting jogou pessimamente. O golo foi um daqueles golpes de sorte que constituem o insubstituível tempero do futebol. Aliás, há tantos comentadores preocupados com a “justiça” dos resultados que, segundo a sua filosofia, seria normal proclamarem a “injustiça” da eliminação do Twente… Mas não. Não só isso não aconteceu, como Rui Patrício surgiu promovido a figura santificada. E quando escrevo “santificada”, não o faço de ânimo leve. Houve mesmo um jornal (Record, 6 de Agosto) que fez manchete com uma imagem [aqui ao lado] de Rui Patrício em pose com uma figura de Nossa Senhora, sob o título: “Rezo a todos os santos”; no mesmo dia, “A Bola” titulava: “Sou um homem de fé e senti uma força extra.”
Repare-se: não está em causa a veracidade das transcrições. Os jornais estão, por certo, a citar palavras de Rui Patrício. Acontece que o jornalismo não é, nunca foi, nunca será, uma mera tarefa de reprodução seja do que for. Tudo o que se diz, mostra ou escreve (e, sobretudo, o modo como se diz, mostra ou escreve) decorre de opções. E estas opções conseguem essa coisa obscena que é conferir transcendência a um banal acidente de jogo. Porquê e, sobretudo, para quê transformar isso em imagens de uma saga religiosa?
O imaginário futebolístico português está cada vez mais ferido por este tipo de processos em que, com chocante facilidade, se fabricam “heróis” para usar e deitar fora. Veja-se o caso de outro guarda-redes, Ricardo, muito celebrado pelo seu protagonismo nos quartos de final do Euro 2004, quando a selecção portuguesa eliminou a Inglaterra [foto]. O empolamento das proezas de Ricardo nesse jogo (com o célebre tirar das luvas para defender um penalti) contrasta com a imensa indiferença com que, actualmente, é tratada a sua passagem não muito feliz pela equipa espanhola do Bétis: será que estes “heróis” já não merecem ser considerados quando, desportivamente, as coisas lhes correm menos bem?
Bem sabemos que vivemos no país em que o mais pequeno soluço de Cristiano Ronaldo pode servir de pretexto para fazer manchetes e, televisivamente, ocupar longos minutos de antena que, por norma, nem a um Nobel são concedidos. Seja como for, casos como este episódio em torno de Rui Patrício são sintoma da terrível mediocridade da nossa vida simbólica. Por um lado, condenam-nos a uma galeria de “heróis” superficiais e anedóticos; por outro lado, podem funcionar como mecanismos de esmagamento de carreiras e até de personalidades. Esperemos que Rui Patrício tenha algum humor e seja o primeiro a compreender a ironia do seu feito.
Já lá vai mais de uma semana. Mas os ecos mediáticos do apuramento do Sporting para o play-off da Liga dos Campeões continuam a justificar alguma atenção. É bem verdade que o final do jogo Twente-Sporting foi espectacular. E espectacularmente saboroso. Já passava dos 90 minutos e o resultado (1-0) colocava a equipa portuguesa fora da competição: só um golo resolveria a questão. Surge, então, um canto a favor dos leões e o guarda-redes, Rui Patrício, decide ir lá à frente tentar a sorte… De tal modo que consegue atrapalhar a defesa dos holandeses: a bola é desviada e, num desconcertante autogolo, dá o empate ao Sporting e a vitória na eliminatória.
Dito isto, que sentido faz a ligeireza com que Rui Patrício foi transformado em “herói”? De facto, o Sporting jogou pessimamente. O golo foi um daqueles golpes de sorte que constituem o insubstituível tempero do futebol. Aliás, há tantos comentadores preocupados com a “justiça” dos resultados que, segundo a sua filosofia, seria normal proclamarem a “injustiça” da eliminação do Twente… Mas não. Não só isso não aconteceu, como Rui Patrício surgiu promovido a figura santificada. E quando escrevo “santificada”, não o faço de ânimo leve. Houve mesmo um jornal (Record, 6 de Agosto) que fez manchete com uma imagem [aqui ao lado] de Rui Patrício em pose com uma figura de Nossa Senhora, sob o título: “Rezo a todos os santos”; no mesmo dia, “A Bola” titulava: “Sou um homem de fé e senti uma força extra.”
Repare-se: não está em causa a veracidade das transcrições. Os jornais estão, por certo, a citar palavras de Rui Patrício. Acontece que o jornalismo não é, nunca foi, nunca será, uma mera tarefa de reprodução seja do que for. Tudo o que se diz, mostra ou escreve (e, sobretudo, o modo como se diz, mostra ou escreve) decorre de opções. E estas opções conseguem essa coisa obscena que é conferir transcendência a um banal acidente de jogo. Porquê e, sobretudo, para quê transformar isso em imagens de uma saga religiosa?
O imaginário futebolístico português está cada vez mais ferido por este tipo de processos em que, com chocante facilidade, se fabricam “heróis” para usar e deitar fora. Veja-se o caso de outro guarda-redes, Ricardo, muito celebrado pelo seu protagonismo nos quartos de final do Euro 2004, quando a selecção portuguesa eliminou a Inglaterra [foto]. O empolamento das proezas de Ricardo nesse jogo (com o célebre tirar das luvas para defender um penalti) contrasta com a imensa indiferença com que, actualmente, é tratada a sua passagem não muito feliz pela equipa espanhola do Bétis: será que estes “heróis” já não merecem ser considerados quando, desportivamente, as coisas lhes correm menos bem?
Bem sabemos que vivemos no país em que o mais pequeno soluço de Cristiano Ronaldo pode servir de pretexto para fazer manchetes e, televisivamente, ocupar longos minutos de antena que, por norma, nem a um Nobel são concedidos. Seja como for, casos como este episódio em torno de Rui Patrício são sintoma da terrível mediocridade da nossa vida simbólica. Por um lado, condenam-nos a uma galeria de “heróis” superficiais e anedóticos; por outro lado, podem funcionar como mecanismos de esmagamento de carreiras e até de personalidades. Esperemos que Rui Patrício tenha algum humor e seja o primeiro a compreender a ironia do seu feito.