domingo, agosto 30, 2009

A marca amarela

Este texto foi originalmente publicado no suplemento DN Gente de 22 de Agosto, com o título 'O Triunfo da Marca Amarela'. A cartela amarela, com o logotipo no centro, é uma das mais fortes imagens de marca na história da música. O actual logotipo não nasceu com a editora, que este ano soma 111 anos de actividade. Mas desde finais dos anos 40 a "marca amarela" é etiqueta respeitada e bem sucedida, representando um percurso que acompanhou as sucessivas revoluções tecnológicas e um catálogo que, ao longo das décadas, acolheu a participação de alguns dos maiores maestros, intérpretes, orquestras e compositores que o mundo conheceu desde que a música deixou de ser um exclusivo das salas de espectáculos para, gravada, passar a entrar pelas casas de todos nós. De Enrico Caruso a Leonard Bernstein, de Herbert von Karajan a Anne-Sophie Mutter, de Willhelm Kempff a Anne Sofie von Otter, de Wilhelm Furtwangler a Karlheinz Stock- hausen, de Pierre Boulez a Maria João Pires, a "família" de nomes que ao longo de mais de um século gravou pela Deutsche Grammophon (DG) fez do seu catálogo um verdadeiro arquivo de algumas das mais importantes e bem sucedidas gravações da história da música gravada. A companhia nasceu em 1898 em Hannover (Alemanha), juntamente com a primeira fábrica de discos e gramofones. À sua frente estava Emile Berliner (nada mais que o inventor do disco).
Dois anos depois o disco de Berliner venceu a primeira batalha de formatos, suplantando o cilindro de Thomas Edison, criando então um novo paradigma para a venda de música gravada. Para a vitória neste confronto contribuiu a presença de nomes de primeiro plano no catálogo, entre os quais se destacava então a presença de Enrico Caruso ou Francesco Tamagno (este último o primeiro 'Otello' de Verdi). A primeira década do século XX é tempo de estreias em série. Data de então a primeira gravação de uma orquestra, ao som de um andamento do Concerto para Piano de Grieg, com Wilhelm Back- haus como solista. Três anos depois, a 5.ª Sinfonia de Beethoven torna-se a primeira obra a ser gravada na sua extensão total. Arthur Nikisch dirige aí a Filarmónica de Berlim, num registo que ocupa quatro discos de duas faces. Em 1904, o estatuto conquistado pela companhia vale-lhe o "sim" de Nellie Melba, a maior estrela de ópera do seu tempo. Fred Gaisberg, um dos colaboradores directos de Berliner, desloca-se também por essa altura a um castelo em Gales para gravar Adelina Patti, outra das grandes vozes da época. .
Nellie Melba e Enrico Caruso
A conturbada Europa política dos anos 10 a 40 afecta seriamente a história musical (e empresarial) da Deutsche Grammophon. A Primeira Guerra Mundial leva à separação das operações inglesa e alemã da companhia. E com a separação chega ao fim a utilização da marca 'His Master 'sVoice' (e da imagem de Napier, o cão que olhava de perto para um gramofone, nas etiquetas dos seus discos editados até aí). Mas no plano técnico e artístico, a história segue o seu caminho.
Em 1925, com a chegada de um novo sistema de gravação electroacústica é lançada uma primeira integral sinfónica de Beethoven por Oskar Fried (e outros). No ano seguinte, Wilhelm Furtwängler grava a 5.ª de Beethoven e o Freischütz de Weber... E quando o fundador Berliner morre, em 1928, a produção da companhia que abrira as portas 30 anos antes já tinha atingido os dez milhões de discos, empregando a fábrica de Hanôver 600 pessoas.
A Grande Depressão gera a primeira quebra mundial de vendas de discos. Tempos difíceis que se prolongam durante o III Reich, sob o qual se aplicam restrições editoriais. Data desse período a chegada ao catálogo do maestro Herbert von Karajan, que se estreia em disco em 1938. Outras dificuldades surgem sob novo cenário de guerra mundial, nomeadamente a escassez de matérias-primas.
Alguns projectos editoriais especiais mesmo assim chegam a bom porto. Um deles é uma gravação completa da Paixão segundo São Mateus, de Bach, por Bruno Kittel em 1942, cujas matrizes são levadas por submarino até ao Japão, onde havia 17 mil encomendas feitas. A fábrica em Hanôver é destruída na sequência de um bombardeamento e, depois da guerra, a produção é retomada numa pequena oficina em Berlim.
.
Com o fim da guerra novos mercados e desafios abrem-se ao mercado da música gravada. A Deutsche Grammophon é, em 1946, a primeira companhia a fazer todas as gravações usando fita magnética. No mesmo ano é criado o selo Archiv, especialmente dedicado à música antiga. E na recta final da década, depois da venda dos direitos da marca His Master's Voice à EMI, surge finalmente a etiqueta amarela ornada com tulipas azuis que desde então é imagem de marca da editora.
As revoluções tecnológicas estão na base de alguns dos grandes acontecimentos na história da DG na segunda metade do século XX. E o aparecimento do LP em vinil e, mais tarde, o advento da gravação em estéreo, foram conquistas rapidamente assimiladas, colocadas ao serviço de gravações de nomes como David Oistrakh, Sviatoslav Richter, Georg Solti, Elisabeth Schwarzkopf, Karl Böhm, Rafael Kubelik, Lorin Maazel ou Claudio Abbado, que então chegam à editora.
A partir dos anos 50, a música electrónica ganha ali visibilidade através de obras editadas em disco por Karlheinz Stockhausen. Em 1962 cabe a Karajan, à frente da Filarmónica de Berlim, a primeira gravação das nove sinfonias de Beethoven em estéreo, numa edição que apresenta ao público o primeiro pacote por assinatura.
.
Com os anos 80 chega ao catálogo uma nova geração de artistas, revelando globalmente, entre outros, os nomes de Anne Sofie von Otter, Bryn Terfel ou Maria João Pires. E entra em cena o CD, que tem no maestro Karajan um dos seus maiores entusiastas.
Tal como no passado, a entrada em cena de novos formatos foi rapidamente assimilada pela Deutsche Grammophon, que hoje tem activa uma loja online que propõe, além dos títulos apresentados para o mercado "físico", uma série de lançamentos exclusivos para venda por download.
Porém, e como no passado, a adaptação da companhia a novos tempos não se limitou a mudanças tecnológicas, tendo os últimos anos assistido a uma série de novas contratações, que hoje dão já considerável protagonismo a uma nova geração de artistas.
.
O mais recente "fenómeno" que a editora viu nascer chama-se Gustavo Dudamel. A primeira "estrela" nascida do sistema de orquestras juvenis venezuelano ganhou sobretudo visibilidade com o lançamento de Fiesta!, álbum de 2008 no qual a Orquestra Simón Bolívar interpretou uma série de peças de compositores contemporâneos latino-americanos. Dudamel não é contudo a única nova estrela entre a geração de artistas que têm assinado alguns dos títulos mais aclamados da editora na presente década. Uma série de vozes representam parte da linha da frente dos protagonistas do catálogo, entre eles Thomas Quasthoff, Rolando Villazón, Magdalena Kozéná, Elina Garanca ou Anna Netrebko, estas duas últimas tendo partilhado este ano a gravação da ópera I Capuleti e i Montecchi, de Bellini.
O pianista chinês Lang Lang é outro dos casos sérios de sucesso no catálogo actual da DG. Há um ano lançou uma autobiografia. Para o Outono anuncia uma gravação de obras de Rachmaninov e Tchaikovsky. Um panorama da nova geração DG não pode ignorar a violinista norte-americana Hillary Hahn ou o maestro finlandês Esa-Pekka Salonen, que a acompanhou num disco com gravações de obras de Sibelius e Schoenberg que lhes valeu um Grammy.
.
A DG sempre contou com compositores em catálogo. E nesta década, aquele que mais se destacou terá sido o argentino Osvaldo Golijov, que deverá editar ainda este ano uma nova gravação da sua Passion Según San Marcos. Entre os projectos em carteira tem uma segunda ópera, encomendada pelo Met, de Nova Iorque.