segunda-feira, agosto 03, 2009

Delon e Delon: veja as diferenças

O que é a vida de uma imagem? Quantas vezes uma imagem pode morrer e renascer? Por exemplo, Alain Delon a fumar... ou não — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 de Agosto), com o título 'Que perfume anda a usar Alain Delon?'


Há poucos dias, surgiu um novo anúncio da Eau Sauvage, da marca Christian Dior. Ao lado de uma embalagem do perfume, há um grande plano do actor Alain Delon, posando com a mão direita sob o queixo. De imediato começou a circular, em particular na Internet, a fotografia original a partir da qual foi concebido o anúncio.
Trata-se de uma imagem de 1966, obtida por Jean-Marie Périer, numa época em que Delon era uma das grandes estrelas do cinema europeu (bastará recordar que, em 1962 e 1963, tinha sido dirigido por Michelangelo Antonioni e Luchino Visconti, respectivamente em O Eclipse e O Leopardo). Mas não foi por razões meramente nostálgicas que se recordou a fotografia de Périer. Há uma diferença essencial: no original, Delon segura um cigarro entre o indicador e o dedo médio; na publicidade, o cigarro desapareceu. Os sofisticados recursos digitais permitiram “limpar” a imagem, assim satisfazendo as exigências da chamada lei Evin, de 1991 (designada a partir do nome do seu proponente, Claude Évin, então ministro da Saúde), que estabelece as normas de proibição de publicidade a tabaco e bebidas alcoólicas.
Para além do enquadramento legal da situação, o episódio não pode deixar de suscitar uma curiosidade não alheia a uma perversa forma de sedução. Através dele, somos relembrados de uma verdade muito básica: cada imagem está longe de existir como um testemunho linear, muito menos definitivo. Para compreendermos a vida íntima das imagens (e a nossa vida com elas, e através delas), precisamos de não esquecer que há nelas uma vulnerabilidade tão extrema quanto o seu eventual poder de revelação. A história, aliás, conserva muitos exemplos esclarecedores, a começar pelos lendários e sinistros processos estalinistas, fazendo desaparecer algumas figuras “indesejáveis” das fotografias oficiais.
O caso de Delon é, obviamente, de outra natureza. E é tanto mais interessante quanto está longe de ser isolado. Por diversas razões, a outras figuras francesas (André Malraux, Jean-Paul Sartre) já foram sonegados os seus cigarros. Recentemente, houve mesmo dois casos ligados ao mundo do cinema. Num deles, foi alterada a promoção a uma retrospectiva de Jacques Tati na Cinemateca Francesa: no respectivo cartaz, o inconfundível cachimbo de Tati (no filme O Meu Tio, de 1958) foi substituído por um... moinho de papel [em baixo, pormenores da imagem original e da sua alteração]. No outro, foi retirado um cartaz do filme Coco Avant Chanel, com a imagem de Audrey Tautou a fumar, que chegou a estar exposto nas salas dos Campos Elíseos.
Há em todas estas atitudes de “purificação” uma ingenuidade característica de algumas formas de liberalismo moral (obviamente não estranhas aos sobressaltos do liberalismo económico): acredita-se, ou quer fazer-se acreditar, que as imagens existem à nossa volta como formas potenciais de contaminação e, mais especificamente, de imitação. Ao mesmo tempo, essa crença é hipocritamente selectiva, nunca se confrontando com a normalização televisiva (por exemplo, as imagens da sexualidade nas telenovelas). Em última instância, e como a história sempre nos ensina, o gesto meramente moralista produz o efeito contrário às suas “intenções”: a imagem de Delon ganhou nova sedução, não por causa do perfume que usa, mas por estar a fumar.