sexta-feira, julho 03, 2009

Sócrates entre as mulheres

Finalmente, acontece algo de interessante no campo específico da propaganda política através dos cartazes de rua. O novo outdoor do Partido Socialista, centrado numa imagem de José Sócrates e sustentado pelo lema "Avançar Portugal", é um objecto simples, directo e atraente, ao mesmo tempo tecido de alguns calculados subtextos que vale a pena referir.
A) Desde logo, como é óbvio, a integração do líder num contexto inequivocamente feminino. Figurar Sócrates literalmente entre as mulheres não visa apenas a "outra metade" que pode decidir uma eleição. Trata-se também de fazer perpassar uma discreta erotização que se demarca, ponto por ponto, dos processos de difamação pessoal a que o primeiro-ministro tem sido sujeito. Isto, convém referir, num contexto em que persiste um problema de fundo de muitos actores da classe política e de alguns sectores da "informação", sobretudo televisiva: o de não se demarcarem do estilo de pornografia sentimental com que muitas vezes são tratadas algumas figuras da cena política (mesmo quando, legitimamente, se faz uma leitura negativa do seu trabalho).
B) Depois, há esse alargamento simbólico do espaço de figuração do próprio político: Sócrates emerge num cenário eminentemente humano — em boa verdade, exclusivamente humano —, contrariando o estilo de "santinhos da cataquese" com que, da direita à esquerda (incluindo, como é óbvio, o PS), se insiste em representar os nossos políticos.
C) Finalmente, registe-se a simbologia nacional com as cores da bandeira (o verde na zona esquerda da imagem, o vermelho à direita). É uma solução algo básica, mas representa um ganho de expressão em relação à inserção automática dos símbolos do país — acima de tudo, isso faz-se, insisto, numa paisagem em que predomina o elemento humano.

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O aparecimento deste cartaz acontece quando se volta a falar do facto de o PS ter contratado a Blue State Digital, a mesma empresa que tem estado a trabalhar com Barack Obama (tendo concebido, em particular, o My.BarackObama.com). E é uma tristeza observar que, por algum jornalismo e pelos discursos mais maniqueístas da blogosfera, perpassa um leque de insinuações sobre tal facto. O não dito de tais insinuações é uma versão pós-moderna dos Velhos do Restelo: chamar uma empresa do marketing americano seria corromper a mui lusitana pureza do fazer política — não se trata sequer de uma crítica dos valores da política de Obama (ou de Sócrates), mas do mero relançamento das mais primitivas formas de anti-americanismo primário.
Não sabemos se este cartaz já resulta, ou não, do trabalho da Blue State Digital com o PS — em última instância, sabê-lo é irrelevante para tentar pensar um pouco o que está em jogo. E o que está em jogo é a possibilidade de transformar um pouco a fadiga comunicacional e a pacatez estética de quase toda a propaganda política que, em anos recentes, se tem feito em Portugal. Este cartaz do PS, com Vital Moreira como candidato nas eleições europeias, é um bom/mau exemplo do primarismo que importa questionar.

Claro que o impacto de tal cartaz está fortemente condicionado pelo fraco valor simbólico que a imagem de Vital Moreira, já há alguns anos, passou a ter na cena política. Em todo o caso, o que prevalece é uma espécie de consagração "transcendental" do candidato, tratado como figura santificada de um cenário banalmente abstracto.

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Globalmente, talvez se possa considerar que tem havido duas linhas de expressão apostadas em tentar contrariar este primarismo. Uma constituiu-se mesmo em imagem de marca, esquemática, mas pacientemente estruturada: assim, o Bloco de Esquerda favorece uma expressão visual assumidamente panfletária, por vezes "cómica", integrando modos visuais que têm tanto a ver com algumas linguagens publicitárias contemporâneas como com as heranças do grafismo soviético (na certeza de que aquelas linguagens não são estranhas à herança plural de tal grafismo). Observe-se, por exemplo, este cartaz de "informação & palavra de ordem", lançado logo após as eleições europeias.


Entretanto, no PSD, a liderança de Manuela Ferreira Leite parece ter suscitado um paradoxal movimento de avanços e recuos. Dir-se-ia que existe a consciência de que a líder é vulnerável, quanto mais não seja porque nunca foi uma presença forte no imaginário (e nas imagens) da vida política. Por isso mesmo, assiste-se a uma valorização do discurso mais ou menos programático: a escolha de palavras de ordem como esta ("Nunca baixamos os braços") tenta desviar a questão do confronto político para o domínio "popular" da entrega e da moralização — mesmo do ponto de vista meramente visual, trata-se de uma solução débil (é duvidoso que a cor laranja das letras baste para sublinhar convenientemente a origem do discurso), nessa medida revelando limitações idênticas à do cartaz do Bloco de Esquerda. Em qualquer caso, aponta para a necessidade/possibilidade de alguma diversificação da iconografia política.

Escusado será lembrar que esta conjuntura visual e gráfica envolve questões essenciais para os próximos actos eleitorais. Embora quase ninguém queira falar sobre isso — o Presidente da República é uma honrosa excepção —, a abstenção das europeias (62%) aponta para um gravíssimo enfranquecimento da mobilização democrática. De uma maneira ou de outra, nem que seja por lamentável omissão, esse é um dado que não poderá deixar de pesar no comportamento — e nas formas de propaganda — de todas as forças políticas.