O Verão cinematográfico é quase sempre feito "em nome" das crianças, para o melhor e para o pior — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 de Junho), com o título 'Ainda há lugar para um cinema adulto?'.
Como é habitual, a chamada temporada de Verão impõe uma visão “infantil”, tendencialmente irresponsável, do cinema e do seu consumo. Repare-se: não se trata de lançar qualquer suspeita sobre os filmes que visam, antes de tudo o mais, as crianças (ainda menos de menosprezar a sua existência social, quer dizer, o facto de também serem consumidoras). Aliás, um dos títulos anunciados para este Verão, Up/Altamente, dos estúdios Pixar, é um esclarecedor exemplo da crescente sofisticação técnica e riqueza simbólica dos desenhos animados digitais.
Trata-se, isso sim, de estabelecer uma linha de demarcação. De facto, uma coisa é a existência de um público infantil, obviamente importante no plano cultural e também, importa dizê-lo sem qualquer preconceito, enquanto factor económico. Outra coisa bem diferente é o generalizado triunfo de um “infantilismo” do marketing e da imagem pública do cinema cujo efeito primordial é a secundarização de todos os filmes que se distingam pela gravidade própria de uma visão adulta.
Podemos temer, por isso mesmo, que um filme como State of Play, de Kevin Macdonald, com Russell Crowe, Ben Affleck e Rachel MacAdams, seja vítima deste estado de coisas. Aliás, o título português, Ligações Perigosas, também não ajudará muito (como é possível que o título de um clássico da literatura do século XVIII seja reaplicado com esta ligeireza?). Acontece que State of Play é uma proposta muito séria de discutir duas temáticas inerentes aos nossos tempos mediáticos: primeiro, o equilíbrio instável entre o espaço jornalístico e a cena política (de Washington, neste caso); segundo, as relações de complementaridade ou conflito que se podem estabelecer entre o jornalismo em papel e o jornalismo praticado na Internet.
Aliás, a simples existência de um filme como State of Play filme contraria também esse grosseiro lugar-comum (não poucas vezes favorecido pelo jornalismo mais medíocre) segundo o qual o cinema americano são... “explosões” e “efeitos especiais”. A sua permanência decorre da simples incapacidade de olhar para a diversidade dos filmes, das histórias e dos estilos. Seja como for, vale a pena insistir no facto de a dimensão social e as componentes políticas serem factores nada acidentais na história de Hollywood, mas sim inerentes a todos os seus conceitos de narrativa e espectáculo (ou será que alguém pensa que E Tudo o Vento Levou é um manual técnico sobre a apanha do algodão?)
State of Play é mesmo um exemplo modelar de um cinema que se mantém fiel a valores de observação e crítica social que nos remetem para a nobre tradição dos thrillers políticos da década de 70. Nessa época, pela acção conjunta de diversos factores, desde a guerra do Vietname ao escândalo Watergate, o melhor cinema americano deu mostras de uma notável capacidade de dar conta do presente made in USA. O caso de All the President's Men/Os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, com Dustin Hoffman e Robert Redford, é esclarecedor: abordando, precisamente, o Watergate, o cinema americano mantinha uma relação directa e empenhada com as convulsões do seu país e, mais do que isso, com as suas feridas mais dolorosas e perturbantes. A diferença não está nos filmes, mas nos valores de consumo: nessa altura, o mercado não tinha medo de ser adulto.
Como é habitual, a chamada temporada de Verão impõe uma visão “infantil”, tendencialmente irresponsável, do cinema e do seu consumo. Repare-se: não se trata de lançar qualquer suspeita sobre os filmes que visam, antes de tudo o mais, as crianças (ainda menos de menosprezar a sua existência social, quer dizer, o facto de também serem consumidoras). Aliás, um dos títulos anunciados para este Verão, Up/Altamente, dos estúdios Pixar, é um esclarecedor exemplo da crescente sofisticação técnica e riqueza simbólica dos desenhos animados digitais.
Trata-se, isso sim, de estabelecer uma linha de demarcação. De facto, uma coisa é a existência de um público infantil, obviamente importante no plano cultural e também, importa dizê-lo sem qualquer preconceito, enquanto factor económico. Outra coisa bem diferente é o generalizado triunfo de um “infantilismo” do marketing e da imagem pública do cinema cujo efeito primordial é a secundarização de todos os filmes que se distingam pela gravidade própria de uma visão adulta.
Podemos temer, por isso mesmo, que um filme como State of Play, de Kevin Macdonald, com Russell Crowe, Ben Affleck e Rachel MacAdams, seja vítima deste estado de coisas. Aliás, o título português, Ligações Perigosas, também não ajudará muito (como é possível que o título de um clássico da literatura do século XVIII seja reaplicado com esta ligeireza?). Acontece que State of Play é uma proposta muito séria de discutir duas temáticas inerentes aos nossos tempos mediáticos: primeiro, o equilíbrio instável entre o espaço jornalístico e a cena política (de Washington, neste caso); segundo, as relações de complementaridade ou conflito que se podem estabelecer entre o jornalismo em papel e o jornalismo praticado na Internet.
Aliás, a simples existência de um filme como State of Play filme contraria também esse grosseiro lugar-comum (não poucas vezes favorecido pelo jornalismo mais medíocre) segundo o qual o cinema americano são... “explosões” e “efeitos especiais”. A sua permanência decorre da simples incapacidade de olhar para a diversidade dos filmes, das histórias e dos estilos. Seja como for, vale a pena insistir no facto de a dimensão social e as componentes políticas serem factores nada acidentais na história de Hollywood, mas sim inerentes a todos os seus conceitos de narrativa e espectáculo (ou será que alguém pensa que E Tudo o Vento Levou é um manual técnico sobre a apanha do algodão?)
State of Play é mesmo um exemplo modelar de um cinema que se mantém fiel a valores de observação e crítica social que nos remetem para a nobre tradição dos thrillers políticos da década de 70. Nessa época, pela acção conjunta de diversos factores, desde a guerra do Vietname ao escândalo Watergate, o melhor cinema americano deu mostras de uma notável capacidade de dar conta do presente made in USA. O caso de All the President's Men/Os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, com Dustin Hoffman e Robert Redford, é esclarecedor: abordando, precisamente, o Watergate, o cinema americano mantinha uma relação directa e empenhada com as convulsões do seu país e, mais do que isso, com as suas feridas mais dolorosas e perturbantes. A diferença não está nos filmes, mas nos valores de consumo: nessa altura, o mercado não tinha medo de ser adulto.