O rosto de Peter Lorre em Punição (1935) é apenas uma das razões para revisitarmos o mundo singular de Sternberg — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 de Junho), com o título 'Redescobrindo Josef von Sternberg'.
Conheço há muitos anos uma forma particular de difamação da “crítica” de cinema que consiste em proclamar que os “críticos” desejariam impor o seu “gosto” a todas as formas de difusão e programação dos filmes. Mesmo passando à frente da impossibilidade de definir qualquer espaço de opinião a partir de “um” gosto, valerá a pena dizer que, em boa verdade, semelhantes atoardas acabam por desempenhar um significativo papel de ocultação. De quê? Das próprias opções do mercado e do modo como elas reflectem critérios específicos.
Lembrei-me, uma vez mais, de tal problema a propósito do recente lançamento, em DVD, de Punição (1935), de Josef von Sternberg [foto à esquerda], adaptação (muito) livre do Crime e Castigo, de Dostoievsky. Repare-se: já nem se trata de interrogar o mercado por continuar a possuir imensas lacunas na divulgação dos grandes clássicos dos anos 30/40, sejam eles de Hollywood, sejam de produção europeia. A pergunta, a meu ver mais pertinente do que nunca, é de outra natureza. A saber: já que o mercado escolhe editar um filme de Sternberg, que faz com ele?
A resposta quase poderia ser: não faz nada. Claro que o filme está aí, para quem o quiser descobrir (embora seja também inevitável recordar que é nulo o trabalho comercial executado para promover títulos como este). Mas repare-se ainda: esta é uma edição que nem sequer menciona o nome de Sternberg na capa (o actor principal, Peter Lorre, é o único identificado), sendo apenas citado na ficha incluída na contracapa. Mais do que isso: Dostoievsky [imagem a cores] e o seu romance também só constam da mesma ficha, e nem sequer foi traduzido o respectivo título (sendo referido como Dostoievsky’s “Crime and Punishment”).
Na prática, o que isto traduz pouco ou nada tem a ver com o labor concreto dos críticos de cinema, mas diz-nos muito sobre a lógica (ou a falta dela) que comanda uma profunda indiferença pelo público potencial. De facto, quando se lança um Sternberg desta maneira, que conceito comercial se tem dessa fundamental zona do mercado que é o universo plural dos clássicos?
Com alguma ironia, podemos dizer que esta indiferença do mercado encontraria, por certo, um aliado de peso no próprio... Sternberg. O cineasta fez o filme claramente contrariado, apenas porque o seu contrato com a Paramount a isso o obrigava. No mesmo ano, 1935, Sternberg assinara The Devil Is a Woman/A Mulher e o Fantoche, sétimo e último título em que dirigiu Marlene Dietrich [foto] , criando um dos mais fascinantes capítulos romanescos e eróticos de toda a história do cinema (iniciado, cinco anos antes, na Alemanha, com O Anjo Azul). Em crescente conflito com o estúdio, sempre considerou que a transposição de Crime e Castigo para os cenários da Califórnia era qualquer coisa de absurdo e inverosímil.
Digamos, para simplificar, que faz sentido defender o filme contra a opinião do seu realizador (aliás, a história ensina que os filmes, como qualquer trabalho artístico, têm uma vida própria e geram significações específicas). Punição é uma descida aos infernos da consciência humana, da culpa e do remorso, e vale a pena redescobri-lo, nem que seja só para ver como tudo isso se reflecte no rosto de um actor tão genial e inclassificável como Peter Lorre.
Conheço há muitos anos uma forma particular de difamação da “crítica” de cinema que consiste em proclamar que os “críticos” desejariam impor o seu “gosto” a todas as formas de difusão e programação dos filmes. Mesmo passando à frente da impossibilidade de definir qualquer espaço de opinião a partir de “um” gosto, valerá a pena dizer que, em boa verdade, semelhantes atoardas acabam por desempenhar um significativo papel de ocultação. De quê? Das próprias opções do mercado e do modo como elas reflectem critérios específicos.
Lembrei-me, uma vez mais, de tal problema a propósito do recente lançamento, em DVD, de Punição (1935), de Josef von Sternberg [foto à esquerda], adaptação (muito) livre do Crime e Castigo, de Dostoievsky. Repare-se: já nem se trata de interrogar o mercado por continuar a possuir imensas lacunas na divulgação dos grandes clássicos dos anos 30/40, sejam eles de Hollywood, sejam de produção europeia. A pergunta, a meu ver mais pertinente do que nunca, é de outra natureza. A saber: já que o mercado escolhe editar um filme de Sternberg, que faz com ele?
A resposta quase poderia ser: não faz nada. Claro que o filme está aí, para quem o quiser descobrir (embora seja também inevitável recordar que é nulo o trabalho comercial executado para promover títulos como este). Mas repare-se ainda: esta é uma edição que nem sequer menciona o nome de Sternberg na capa (o actor principal, Peter Lorre, é o único identificado), sendo apenas citado na ficha incluída na contracapa. Mais do que isso: Dostoievsky [imagem a cores] e o seu romance também só constam da mesma ficha, e nem sequer foi traduzido o respectivo título (sendo referido como Dostoievsky’s “Crime and Punishment”).
Na prática, o que isto traduz pouco ou nada tem a ver com o labor concreto dos críticos de cinema, mas diz-nos muito sobre a lógica (ou a falta dela) que comanda uma profunda indiferença pelo público potencial. De facto, quando se lança um Sternberg desta maneira, que conceito comercial se tem dessa fundamental zona do mercado que é o universo plural dos clássicos?
Com alguma ironia, podemos dizer que esta indiferença do mercado encontraria, por certo, um aliado de peso no próprio... Sternberg. O cineasta fez o filme claramente contrariado, apenas porque o seu contrato com a Paramount a isso o obrigava. No mesmo ano, 1935, Sternberg assinara The Devil Is a Woman/A Mulher e o Fantoche, sétimo e último título em que dirigiu Marlene Dietrich [foto] , criando um dos mais fascinantes capítulos romanescos e eróticos de toda a história do cinema (iniciado, cinco anos antes, na Alemanha, com O Anjo Azul). Em crescente conflito com o estúdio, sempre considerou que a transposição de Crime e Castigo para os cenários da Califórnia era qualquer coisa de absurdo e inverosímil.
Digamos, para simplificar, que faz sentido defender o filme contra a opinião do seu realizador (aliás, a história ensina que os filmes, como qualquer trabalho artístico, têm uma vida própria e geram significações específicas). Punição é uma descida aos infernos da consciência humana, da culpa e do remorso, e vale a pena redescobri-lo, nem que seja só para ver como tudo isso se reflecte no rosto de um actor tão genial e inclassificável como Peter Lorre.