sábado, maio 23, 2009

TV: jornalismo, futebol e... Minnelli

Que se passa na televisão? Algum jornalismo pueril, algum futebol não muito bem falado e... Vincente Minnelli! Este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 de Maio), com o título 'Veleidades televisivas'.

1. Com o passar dos anos, José Rodrigues dos Santos criou um curioso estilo pessoal de apresentador de telejornal: a postura hierática é, por assim dizer, pervertida pelas nuances dramáticas que introduz no texto e, em particular, pelo uso simbólico das mãos (por exemplo, para sublinhar oposições como “esquerda/direita”, “dentro/fora”, etc.). É tudo muito pueril e simplista, mas possui um pedagógico poder revelador. Apresentando-se ele como protótipo da objectividade, o seu corpo diz o que muitas formas de jornalismo televisivo insistem em recalcar: que somos também aquilo que fazemos com o corpo, ou melhor, que ter um corpo é o contrário de qualquer neutralidade. Roland Barthes, analista das ideias do corpo, adoraria observar estes lapsos cometidos em nome de uma ingénua crença na “verdade” e na “transparência”.

2. Não quero favorecer a noção grosseira segundo a qual os comentadores do futebol não sabem falar português. Além do mais, comentar um jogo em directo é um trabalho complexo, sujeito a erros frequentes e totalmente compreensíveis. Mas confesso que me incomoda o triunfo do mal falar. Assim, parece consagrada a generalização dos tempos infinitos a abrir frases (“dizer que...”). Agora, entrámos na ignorância das significações originais das palavras. Por exemplo: veleidade, esse “assomo de presunção” a que se refere o Dicionário Houaiss. Para alguns comentadores, a palavra passou a ser sinónimo de facilidade ou cedência: “a equipa está a dar muitas veleidades ao adversário...” Como? Importa-se de repetir?

3. A passar no canal TCM, descubro o clássico Deus Sabe Quanto Amei (1958), de Vincente Minnelli. No original Some Came Running, trata-se de uma pérola do classicismo de Hollywood, com Frank Sinatra, Shirley MacLaine e Dean Martin. E não posso deixar de confrontar aquilo que (re)vejo com a obscena linguagem das telenovelas. Porque Minnelli filma exactamente o mesmo: as atribulações amorosas, as convulsões sexuais, até mesmo o jogo de hipocrisias nas relações sociais. Mas não há comparação possível: de um lado, a paixão pela natureza humana; do outro, apenas a retórica de um conceito medíocre do comércio narrativo.