Que ficou da experiência extrema de Antichrist, em Cannes? Como lidamos com os filmes que experimentam a vulnerabilidade das nossas próprias fronteiras? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 de Maio), com o título 'A solidão de Lars von Trier'.
Órgãos sexuais em actividade. Uma amputação (sexual, também). A carne trespassada. Enfim, um clima de apocalipse, tudo tendo por cenário um espaço chamado Eden. E ainda um título esclarecedor: Antichrist. Assim é o filme com que o dinamarquês Lars von Trier esteve em Cannes.
Espantoso filme, digo eu, capaz de nos fazer repensar todas as certezas sobre o que seja o espaço conjugal, o êxtase de dois corpos, enfim, a simples crença no acto humano de comunicar. Em todo o caso, não me quero fingir ingénuo e reconheço, serenamente, que Antichrist só pode dividir os seus espectadores, acentuando diferenças de sensibilidade, clivagens éticas e contradições filosóficas.
Mas é isso mesmo que deixa a sensação de o filme ter sido “engolido” com mais ou menos dificuldade, entrando no limbo das coisas de que não se fala muito e que, por indiferença ou hipocrisia, se deixam existir na sua solidão. Que diabo (quando vir o filme, o leitor compreenderá que a evocação de Satanás também não tem nada de deslocado)! Em 1972, por causa da lendária “cena da manteiga”, O Último Tango em Paris irrompeu na nossa querida Europa como a heresia que ia repor o reino da barbárie. Agora, a contundência de Antichrist nem sequer evoca a palavra tabu… Em boa verdade, “tabu” passou a ser um mero sinónimo do silêncio dos treinadores de futebol sobre o seu futuro profissional.
Os mais cândidos tentarão garantir-me que estamos mais evoluídos: vivemos em sociedades mais abertas e, por isso, experiências tão extremadas como Antichrist são integradas com mais ou menos agitação, mas sem trauma. Será assim? Não levarão a mal que deixe uma dúvida metódica: a de que a placidez dos confrontos de ideias reflecte uma profunda e inquietante apatia argumentativa e uma indiferença generalizada pelo simples acto de pensar. Na sua conferência de imprensa em Cannes, Lars von Trier garantiu que Antichrist era produto do seu estado depressivo. Como eu o compreendo.
Órgãos sexuais em actividade. Uma amputação (sexual, também). A carne trespassada. Enfim, um clima de apocalipse, tudo tendo por cenário um espaço chamado Eden. E ainda um título esclarecedor: Antichrist. Assim é o filme com que o dinamarquês Lars von Trier esteve em Cannes.
Espantoso filme, digo eu, capaz de nos fazer repensar todas as certezas sobre o que seja o espaço conjugal, o êxtase de dois corpos, enfim, a simples crença no acto humano de comunicar. Em todo o caso, não me quero fingir ingénuo e reconheço, serenamente, que Antichrist só pode dividir os seus espectadores, acentuando diferenças de sensibilidade, clivagens éticas e contradições filosóficas.
Mas é isso mesmo que deixa a sensação de o filme ter sido “engolido” com mais ou menos dificuldade, entrando no limbo das coisas de que não se fala muito e que, por indiferença ou hipocrisia, se deixam existir na sua solidão. Que diabo (quando vir o filme, o leitor compreenderá que a evocação de Satanás também não tem nada de deslocado)! Em 1972, por causa da lendária “cena da manteiga”, O Último Tango em Paris irrompeu na nossa querida Europa como a heresia que ia repor o reino da barbárie. Agora, a contundência de Antichrist nem sequer evoca a palavra tabu… Em boa verdade, “tabu” passou a ser um mero sinónimo do silêncio dos treinadores de futebol sobre o seu futuro profissional.
Os mais cândidos tentarão garantir-me que estamos mais evoluídos: vivemos em sociedades mais abertas e, por isso, experiências tão extremadas como Antichrist são integradas com mais ou menos agitação, mas sem trauma. Será assim? Não levarão a mal que deixe uma dúvida metódica: a de que a placidez dos confrontos de ideias reflecte uma profunda e inquietante apatia argumentativa e uma indiferença generalizada pelo simples acto de pensar. Na sua conferência de imprensa em Cannes, Lars von Trier garantiu que Antichrist era produto do seu estado depressivo. Como eu o compreendo.