Ninguém duvida da importância de Star Trek na história da ficção-científica. Foi, à partida, um fenómeno televisivo, com invulgar quantidade de ramificações, tendo gerado cinco séries de imagem real e uma de animação em mais de 40 anos de vida. Em 1979 chegou ao cinema, pelas mãos de Robert Wise, dando vida no grande ecrã a um projecto, entretanto abortado, de uma segunda série (à qual se chamaria Star Trek: Phase II). Star Trek: The Motion Picture era contudo mais que apenas um episódio longo, aproveitando um orçamento alargado (e uma agenda de trabalhos sem as restrições habituais da produção televisiva) para mostrar o que até então nunca tinha sido possível: a contemplação do desconhecido. Contudo, e apesar de pontuais bons momentos (sobretudo em The Wrath Of Khan, The Voyage Home e The Undiscovered Country) e dos bons resultados de bilheteira, nunca os filmes Star Trek foram mais que projecções revistas e alargadas das heranças da televisão (característica sublinhada nos filmes da Next Generation, claramente menores perante os da geração original).
Em 1987, quando foi emitido o primeiro episódio de Star Trek: The Next Generation, a presença de um breve papel para DeForest Kelley (o Dr. McCoy da série original) assegurava uma passagem de testemunho oficial para uma nova geração de histórias e personagens. Com a acção cem anos adiante da que a geração original conhecera, os novos episódios seguiram os principios narrativos, éticos e “científicos” das histórias criadas em finais dos anos 60, contudo com uma enorme margem de manobra para criar novas realidades dentro e à volta da nova Enterprise. O mesmo sentido de liberdade (respeitadora de principios fundamentais) ganhou expressão nas três séries que se seguiram, cada qual apresentando novas personagens, novas situações, aceitando contudo um contexto “histórico” comum... Agora chega aos ecrãs uma outra proposta de abordagem ao universo Star Trek: o retomar das figuras originais (necessariamente com novo elenco), projectando a acção nos seus dias de juventude, num momento no tempo anterior ao que conhecemos dos episódios originais. O desafio de reactivar uma saga que na presente década tinha mostrado sinais de perda de interesse (e interessados) foi aceite por J.J. Abrams, que aqui tentou o dois em um. Ou seja, o cativar de uma nova geração de espectadores, garantindo ao mesmo tempo a adesão dos muitos seguidores deste universo.
É verdade que conhecemos os seus nomes. Sabemos das suas personalidades (o médico rezingão, o engenheiro folgazão, o “lógico” e dividido Spock...)... Mas em Star Trek (versão 2009) é-nos dado muito mais que uma nova história com velhos heróis vestidos por gente nova. A exploração das personagens aceita as sugestões que a herança Star Trek exige, mas acrescenta espaço à descoberta. A narrativa aproveita com eficácia um jogo de intervenções no espaço-tempo que garante, desde já, novo contexto para esta e as demais histórias que eventualmente se sigam. A presença de Leonard Nimoy (o Spock original) serve a história, passando novo testemunho com mais que uma simples manobra de corpo presente. O “lifting” visual é impressionante, sabenedo o filme usá-lo com conta peso e medida, evitando porém uma contemplação pasmada perante os novos espaços e gadgets, integrando-os como se de coisa do quotidiano se tratasse, no corpo dos acontecimentos. Afinal, há um ritmo de acção a cumprir. Absolutamente seguro na realização, o Star Trek de J.J. Abrams é um herdeiro natural do filão clássico da “space opera”. Usa a tecnologia digital de proa mas, ao contrário dos últimos filmes Star Wars, evita o “look” jogo de computador. Aqui há espaço, há contexto, há gente. Há um universo que nasce sobre uma genética com mais de 40 anos de histórias contadas. Mas com a força e viço de quem quer provar que não quer viver à sombra desse legado. J.J. Abramas pode já dar por bem sucedida a operação (devendo certamente estar por dias o anuncio de novo episódio). Há muito que os ecrãs de cinema não viam um filme de ficção científica assim!