Se dúvidas ainda houvesse, o filme de João Pedro Rodrigues apresentado em 'Un Certain Regard', Morrer como um Homem [foto], bastaria para esclarecer que ele é um dos autores mais originais, e também mais radicais, do cinema português: o seu filme traduz-se numa invulgar viagem ao mundo da identidade sexual, seus fantasmas e revelações.
Morrer como um Homem centra-se na figura de António, aliás "Tonia" (Fernando Santos), um homem que se tornou vedeta de es-pectáculos de travestis e que ambiciona fazer uma operação para mudar de sexo. Num registo de realismo tendencialmente poético, evocando algumas experiências da primeira fase da filmografia de Rainer Werner Fassbinder, João Pedro Rodrigues desenha o labirinto de uma tragédia que começa na diferença sexual, se transfigura em fábula sobre os enigmas da identidade e desemboca numa respiração trágica que, de forma admirável, integra o sentido de destino do... fado. Pode dizer-se que, depois de Ne Change Rien, de Pedro Costa, o melhor do cinema português contemporâneo passou por Cannes.
Grande e, talvez, inevitável desilusão é The Imaginarium of Dr. Parnassus, o filme que o actor Heath Ledger estava a rodar quando faleceu. O realizador Terry Gilliam tenta "substituir" o ausente por três outros actores (Johnny Depp, Jude Law e Colin Farrell), mas o filme ressente-se de tanta atribulação: é um objecto de grande sofisticação técnica e, ao mesmo tempo, de completa arbitrariedade narrativa.