Terence Fisher [foto a preto e branco], mestre do cinema de terror dos estúdios ingleses da Hammer, reapareceu no mercado do DVD através de dois títulos: As Duas Faces do Dr. Jekyll (The Two Faces of Dr. Jekyll ou Jekyll's Inferno) e A Morte Passou de Perto (The Gorgon)— este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 de Abril), com o título 'O médico, o monstro e o cinema inglês'.
Recentemente, sem qualquer evidência, nem mesmo do ponto de vista estritamente promocional, surgiram no mercado de DVD dois títulos do mestre inglês Terence Fisher (1904-1980): As Duas Faces do Dr. Jekyll (1960) e A Morte Passou de Perto (1964). Nem sequer o facto de estarmos perante exemplos do clássico cinema de terror dos estúdios Hammer, com a chancela do lendário produtor Michael Carreras, trouxe qualquer visibilidade especial a tais produtos.
Na prática, não há nada de surpre-endente no esquecimento a que são sujeitos estes (e muitos outros) filmes disponíveis em DVD. O mercado move-se, sobretudo, a partir dos lançamentos de títulos de produção mais recente, contribuindo para manter o statu quo de um público que, globalmente, conti-nua a ser educado para olhar as refe-rências cinéfilas como “coisas” mais ou menos anedóticas ou pitorescas. É um processo obviamente inseparável do perverso apagamento de memórias favorecido pelo imaginário televisivo que infiltrou todas as camadas do tecido social.
Na área do cinema de terror, em particular, há muitos espectadores mais jovens formados a partir de um conceito simplista das narrativas que confunde a acumulação de “efeitos especiais” com o trabalho formal e dramatúrgico. Aliás, semelhante simplismo estende-se aos mais variados géneros, incluindo o “filme de adolescentes”, para muitos uma mera antologia de anedotas mais ou menos escatológicas, em tudo e por tudo distante da riqueza e complexidade de obras-primas clássicas como Fúria de Viver (1955), de Nicholas Ray, ou Esplendor na Relva (1961), de Elia Kazan.
As Duas Faces do Dr. Jekyll pode ser tomado como um caso modelar da estética que Terence Fisher inscreveu no cinema inglês dos anos 50/60 e, em particular, nas produções da Hammer. As suas singularidades são inseparáveis do trabalho do director de fotografia Jack Asher (1916-1991) que, tirando partido da sofisticação do “Technicolor” da época, soube criar um genuíno look Hammer em que alguma sensibilidade realista da pintura do século XIX, em especial no tratamento da figura humana, é integrada de modo a favorecer, paradoxalmente, o pressentimento de um mundo fantástico, em permanente convulsão emocional.
Escusado será dizer que este é um cinema que depende muito pouco do “exibicionismo” técnico que, tantas vezes, reduz as produções contemporâneas a meras ostentações formalistas (aliás sancionadas por um discurso jornalístico e crítico que ignora o carácter específico do trabalho narrativo). Pode até dizer-se que, face a muitos valores actuais de produção, filmes como As Duas Faces do Dr. Jekyll estão condenados a ser vistos como objectos algo anacrónicos. E sê-lo-ão, sem dúvida, para qualquer visão banalmente tecnicista do cinema e da sua história.
O essencial deste cinema joga-se a partir de uma interrogação da verdade humana cujas raízes estão na tradição melodramática e, como é óbvio, na literatura do século XIX. Escusado será lembrar que As Duas Faces do Dr. Jekyll é uma brilhante variação sobre o clássico O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson. Por delicioso contraste, vale a pena recordar também que, três anos depois de Fisher, em 1963, o livro de Stevenson serviria de base a The Nutty Professor, de Jerry Lewis, obra-prima da comédia de Hollywood.
Recentemente, sem qualquer evidência, nem mesmo do ponto de vista estritamente promocional, surgiram no mercado de DVD dois títulos do mestre inglês Terence Fisher (1904-1980): As Duas Faces do Dr. Jekyll (1960) e A Morte Passou de Perto (1964). Nem sequer o facto de estarmos perante exemplos do clássico cinema de terror dos estúdios Hammer, com a chancela do lendário produtor Michael Carreras, trouxe qualquer visibilidade especial a tais produtos.
Na prática, não há nada de surpre-endente no esquecimento a que são sujeitos estes (e muitos outros) filmes disponíveis em DVD. O mercado move-se, sobretudo, a partir dos lançamentos de títulos de produção mais recente, contribuindo para manter o statu quo de um público que, globalmente, conti-nua a ser educado para olhar as refe-rências cinéfilas como “coisas” mais ou menos anedóticas ou pitorescas. É um processo obviamente inseparável do perverso apagamento de memórias favorecido pelo imaginário televisivo que infiltrou todas as camadas do tecido social.
Na área do cinema de terror, em particular, há muitos espectadores mais jovens formados a partir de um conceito simplista das narrativas que confunde a acumulação de “efeitos especiais” com o trabalho formal e dramatúrgico. Aliás, semelhante simplismo estende-se aos mais variados géneros, incluindo o “filme de adolescentes”, para muitos uma mera antologia de anedotas mais ou menos escatológicas, em tudo e por tudo distante da riqueza e complexidade de obras-primas clássicas como Fúria de Viver (1955), de Nicholas Ray, ou Esplendor na Relva (1961), de Elia Kazan.
As Duas Faces do Dr. Jekyll pode ser tomado como um caso modelar da estética que Terence Fisher inscreveu no cinema inglês dos anos 50/60 e, em particular, nas produções da Hammer. As suas singularidades são inseparáveis do trabalho do director de fotografia Jack Asher (1916-1991) que, tirando partido da sofisticação do “Technicolor” da época, soube criar um genuíno look Hammer em que alguma sensibilidade realista da pintura do século XIX, em especial no tratamento da figura humana, é integrada de modo a favorecer, paradoxalmente, o pressentimento de um mundo fantástico, em permanente convulsão emocional.
Escusado será dizer que este é um cinema que depende muito pouco do “exibicionismo” técnico que, tantas vezes, reduz as produções contemporâneas a meras ostentações formalistas (aliás sancionadas por um discurso jornalístico e crítico que ignora o carácter específico do trabalho narrativo). Pode até dizer-se que, face a muitos valores actuais de produção, filmes como As Duas Faces do Dr. Jekyll estão condenados a ser vistos como objectos algo anacrónicos. E sê-lo-ão, sem dúvida, para qualquer visão banalmente tecnicista do cinema e da sua história.
O essencial deste cinema joga-se a partir de uma interrogação da verdade humana cujas raízes estão na tradição melodramática e, como é óbvio, na literatura do século XIX. Escusado será lembrar que As Duas Faces do Dr. Jekyll é uma brilhante variação sobre o clássico O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson. Por delicioso contraste, vale a pena recordar também que, três anos depois de Fisher, em 1963, o livro de Stevenson serviria de base a The Nutty Professor, de Jerry Lewis, obra-prima da comédia de Hollywood.