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Eis uma imagem que reflecte uma sábia utilização da imagem cinematográfica em formato
scope: por um lado, temos uma personagem, Vero (Maria Onetto), que emerge como "principal"; por outro lado, o seu descentramento, o seu olhar sem objecto explícito (ou explicitado) e o suave assombramento do que se revela desfocado, tudo contribui para gerar o sentimento de um espaço instável, porventura indecifrável. Assim é
A Mulher sem Cabeça, de Lucrecia Martel, mais um filme que a cineasta rodou na sua região (
Salta, Argentina), depois de
O Pântano (2001) e
A Rapariga Santa (2004), preservando um clima de
estranha familiaridade — e o paradoxo freudiano não tem, aqui, nada de acidental.
Martel pertence, no fundo, à galeria de criadores contemporâneos que sabem que é politicamente vital discutir, na prática, a normalização da percepção imposta pelas linguagens dominantes na televisão. Trata-se de visitar um quotidiano cuja coerência se desagrega a partir do interior, como se os próprios valores sociais atraissem os seus fantasmas — ou como se as imagens dominantes morressem, aqui, face à complexidade de tudo aquilo (medos, ambiguidades, pulsões) que não querem enfrentar.
>>> Entrevista com Lucrecia Martel em Reverse Shot.