Que imagens (não) nos dão para ver? Que imagens um fotógrafo produz e integra? Perguntas que passam pela nossa actualidade mediática e desembocam num espantoso portfolio de Steven Meisel — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 de Março), com o título 'O jogo de espelhos de Steven Meisel'.
Há toda uma mitologia, dominadora e impositiva, que faz crer que a análise das imagens é uma tarefa mais ou menos ociosa e fútil a que se entregam alguns patéticos intelectuais. Enfim... Para além do simplismo maniqueísta de tal ponto de vista, acontece que os eventuais significados e significações das imagens passaram a ser matéria de eleição, não da intelectualidade, mas dos discursos mais populistas da televisão.
Veja-se o exemplo recente do penalty mal assinalado por Lucílio Baptista na final da Taça da Liga. Salvo melhor opinião, não foram exactamente os intelectuais (nem os sempre suspeitos críticos de televisão) que ocuparam, literalmente, o país com pueris discussões sobre tudo e mais alguma coisa, à excepção da mais básica imponderabilidade de um lance de um jogo de futebol e da irrevogável natura-lidade de um erro humano. Quantas centenas de vezes foram repetidos aqueles cinco ou dez segundos de um mero jogo de futebol? A nossa lusitana mediocridade mediática chegou ao ponto de secundarizar a visita de Bento XVI a Angola, favorecendo antes uma avalancha da mais genuína obscenidade jornalística. Foi pena que a Igreja católica, tão tradicionalmente vocacionada para chamar a atenção para os desequilíbrios morais da sociedade, não tivesse vindo chamar a atenção para esta violenta pornografia futebolística: teria, a meu ver, toda a legitimidade para o fazer.
Vale a pena perguntar, por isso mesmo, como é que os criadores de imagens reagem a este estado de coisas em que, já não os espaços da crítica, mas o jornalismo populista, insiste em transformar cada espectador num “semiólogo” de sofá. Vale a pena, sobretudo, tentar perceber se ainda conseguimos olhar sem esquecermos que uma imagem é um objecto convulsivo de significações que nunca cicatriza num sentido definitivo. Dito de outro modo: a história de uma imagem é também a história das suas sucessivas apropriações e dos olhares que sobre ela se depositam. Roland Barthes ensinou-nos isso há muitos anos (por exemplo, com o seu célebre ensaio sobre Ivan, o Terrível, de Eisenstein), mas é óbvio que a ideologia televisiva só pode menosprezar a herança de Barthes.
Um exemplo recente dessa consciência crítica da imagem chega-nos do espaço da moda, mais concretamente através da edição de Março da Vogue italiana. As novidades da moda de Primavera são objecto de um espantoso portfolio do veterano americano Steven Meisel (nascido em 1954, foi ele que, em 1992, fotografou o livro Sex, de Madonna). Em vez de se limitar a fotografar os modelos com as novas peças de guarda-roupa, Meisel cria um verdadeiro jogo de espelhos que, passa, ironicamente, pela “duplicação” das imagens. Assim, há modelos que são fotografados numa espécie de armários/jaulas de vidro, ao mesmo tempo que fotografias dos respectivos rostos surgem nas paredes; cá fora, outros modelos expõem as novidades de cores mais garridas.
O resultado tem qualquer coisa de inapelavelmente sarcástico. E também de subtilmente pedagógico. Meisel dá-nos a ver um facto muito simples e também muito esquecido: vemos alguém através da sua imagem e, ao mesmo tempo, tendemos a esquecer que essa imagem não esgota a identidade da pessoa. Quanto mais imagens temos, mais cada imagem existe apenas como um lugar de passagem para um possível melhor entendimento do mundo. A não ser, claro, que reduzamos as imagens a objectos inquestionáveis. Pormenor nada acidental: o portfolio de Meisel tem o título “Somos escravos dos objectos à nossa volta”.
Há toda uma mitologia, dominadora e impositiva, que faz crer que a análise das imagens é uma tarefa mais ou menos ociosa e fútil a que se entregam alguns patéticos intelectuais. Enfim... Para além do simplismo maniqueísta de tal ponto de vista, acontece que os eventuais significados e significações das imagens passaram a ser matéria de eleição, não da intelectualidade, mas dos discursos mais populistas da televisão.
Veja-se o exemplo recente do penalty mal assinalado por Lucílio Baptista na final da Taça da Liga. Salvo melhor opinião, não foram exactamente os intelectuais (nem os sempre suspeitos críticos de televisão) que ocuparam, literalmente, o país com pueris discussões sobre tudo e mais alguma coisa, à excepção da mais básica imponderabilidade de um lance de um jogo de futebol e da irrevogável natura-lidade de um erro humano. Quantas centenas de vezes foram repetidos aqueles cinco ou dez segundos de um mero jogo de futebol? A nossa lusitana mediocridade mediática chegou ao ponto de secundarizar a visita de Bento XVI a Angola, favorecendo antes uma avalancha da mais genuína obscenidade jornalística. Foi pena que a Igreja católica, tão tradicionalmente vocacionada para chamar a atenção para os desequilíbrios morais da sociedade, não tivesse vindo chamar a atenção para esta violenta pornografia futebolística: teria, a meu ver, toda a legitimidade para o fazer.
Vale a pena perguntar, por isso mesmo, como é que os criadores de imagens reagem a este estado de coisas em que, já não os espaços da crítica, mas o jornalismo populista, insiste em transformar cada espectador num “semiólogo” de sofá. Vale a pena, sobretudo, tentar perceber se ainda conseguimos olhar sem esquecermos que uma imagem é um objecto convulsivo de significações que nunca cicatriza num sentido definitivo. Dito de outro modo: a história de uma imagem é também a história das suas sucessivas apropriações e dos olhares que sobre ela se depositam. Roland Barthes ensinou-nos isso há muitos anos (por exemplo, com o seu célebre ensaio sobre Ivan, o Terrível, de Eisenstein), mas é óbvio que a ideologia televisiva só pode menosprezar a herança de Barthes.
Um exemplo recente dessa consciência crítica da imagem chega-nos do espaço da moda, mais concretamente através da edição de Março da Vogue italiana. As novidades da moda de Primavera são objecto de um espantoso portfolio do veterano americano Steven Meisel (nascido em 1954, foi ele que, em 1992, fotografou o livro Sex, de Madonna). Em vez de se limitar a fotografar os modelos com as novas peças de guarda-roupa, Meisel cria um verdadeiro jogo de espelhos que, passa, ironicamente, pela “duplicação” das imagens. Assim, há modelos que são fotografados numa espécie de armários/jaulas de vidro, ao mesmo tempo que fotografias dos respectivos rostos surgem nas paredes; cá fora, outros modelos expõem as novidades de cores mais garridas.
O resultado tem qualquer coisa de inapelavelmente sarcástico. E também de subtilmente pedagógico. Meisel dá-nos a ver um facto muito simples e também muito esquecido: vemos alguém através da sua imagem e, ao mesmo tempo, tendemos a esquecer que essa imagem não esgota a identidade da pessoa. Quanto mais imagens temos, mais cada imagem existe apenas como um lugar de passagem para um possível melhor entendimento do mundo. A não ser, claro, que reduzamos as imagens a objectos inquestionáveis. Pormenor nada acidental: o portfolio de Meisel tem o título “Somos escravos dos objectos à nossa volta”.