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Está consumada a fase de escolha dos finalistas do Festival da Canção, organizado pela RTP. Primeiro, um júri seleccionou 24 canções (das 393 apresentadas a concurso). Depois, através de votação pela Internet, no site da RTP, o público foi convidado a expressar-se, tendo sido recebidos 117.639 votos validamente expressos. Dessa votação, resultou uma lista de 12 composições a ser apresentadas em espectáculo marcado para o dia 28, no Teatro Camões.
Teremos uma inesperada colecção de obras-primas? Ou apenas a repetição do desastre artístico de anos recentes? Uma coisa é certa: mesmo com o aparato da muito celebrada “interactividade” (dos votos), não se poderá dizer que o Festival da Canção esteja a gerar uma expectativa que nos faça antecipar um acontecimento muito significativo, quer no plano criativo, quer enquanto mero acontecimento televisivo. Este é mais um caso — proveniente da RTP, mas típico dos valores dominantes nos canais generalistas — em que prevalece uma espécie de nostalgia mais ou menos pitoresca que há muito deixou de ser sustentada por qualquer conceito, musical ou televisivo, minimamente consistente.
As alterações sociais, a evolução do mercado da música e até a sua crescente digitalização poderão ajudar a explicar a decadência a que temos assistido. Mas talvez sejam insuficientes. As televisões tendem a reivindicar-se do “gosto popular” e, mais do que isso, a trabalhar para a sua “satisfação”. O certo é que esse discurso, sistematicamente celebrado como forma de combate contra a “intelectualização” da televisão, acaba por servir de máscara a modelos de acção e programação que, pura e simplesmente, deixaram de pensar a cultura popular.
Na prática, as televisões conseguiram impor a noção segundo a qual a cultura popular coincide com a burocrática gestão dos índices de audiências. Tendo em conta que tal noção se instalou na fabricação de novelas, concursos e seus derivados, esta é uma situação que coloca uma curiosa questão política: no espaço televisivo, quem (ou o “quê”) defende a cultura popular? Ou será que essa cultura morreu, substituída pela cultura mediática? É uma hipótese trágica, mas mais que verosímil.