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Há dias, um enigma inquietante atravessou o país: o Primeiro-Ministro tinha lido a sua mensagem de Natal... de pé! Curiosamente, não descobri ninguém empenhado em especular sobre o facto, porventura ainda mais preocupante, de o Presidente da República ter lido a sua comunicação sobre o Estatuto dos Açores... de pé!
A explicação deste paradoxo filosófico é simples. José Sócrates era todo ele “imagem”, sustentando um discurso meramente funcional, tentando não agravar as incertezas da sua governação e, claro, de cada um dos cidadãos portugueses. Cavaco Silva não dependia de nenhuma distracção “teatral”: surgiu a sustentar um discurso firme, coerente e inequívoco, isto é, genuinamente político.
Num país de discursos moles e clivagens ocultas, já era tempo de alguém fazer política. Podemos, nesta questão dos Açores ou em qualquer outra, concordar ou não com o Presidente. Mas isso não impede que reconheçamos que a sobriedade de imagem que ele tem cultivado, inclusive quando é deselegantemente assediado por muitos microfones, decorre de um salutar princípio: a pertinência do discurso político nunca deve ser secundarizada pela gestão da imagem (também fundamental, como é óbvio).
Na prática, isso tem gerado um curioso efeito de menorização do debate político. Assim, durante meses (desde a primeira intervenção de Cavaco Silva sobre o mesmo Estatuto), ouvimos comentadores de todos os quadrantes proclamar que os portugueses não tinham percebido nada do que o Presidente dissera. Por tradição, diz-se isso dos críticos de cinema, pobres diabos que gritam no deserto. Agora, deu-se um passo mais: os comentadores não nos informam apenas que o Presidente não se percebe; garantem-nos também que nós, eleitores, não estamos a perceber nada. É bom saber que alguém protege a nossa ignorância.