segunda-feira, novembro 24, 2008

"Arte de Roubar": que cinema português?

No seu site oficial, Arte de Roubar apresenta-se como um filme de "tiros, golpadas & gajas boas". No contexto português, semelhante estilo promocional arrasta sempre um subtexto: o de que se trata de um filme para atrair multidões às salas de cinema. Face à discreta carreira comercial de Arte de Roubar, vale a pena repor algumas questões, pelo menos tentando pensar para além dos clichés que nos agridem há várias décadas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 de Novembro), com o título 'Em defesa de Leonel Vieira'.

Foi recentemente lançado nas salas o filme português Arte de Roubar, realizado por Leonel Vieira. Em artigo publicado neste mesmo jornal (8 Nov.), tive oportunidade de expressar um ponto de vista negativo sobre Arte de Roubar, considerando-o um objecto de degenerescência de uma certa tradição popular que, actualmente, possui um padrão de referência no americano Quentin Tarantino e, em tempos a meu ver bastante mais interessantes, passou pelo trabalho do italiano Sergio Leone.
Segundo números oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual, nas duas primeiras semanas de exibição, Arte de Roubar foi visto por 19.490 espectadores, valor francamente baixo para um filme que estreou em 40 salas. Como termo de comparação, observe-se o caso de um lançamento muito mais modesto (18 salas) como A Turma, de Laurent Cantet: depois de dez dias de exibição, A Turma tinha ultrapassado os 15 mil espectadores; ao fim de três semanas (mantendo-se em apenas 12 salas), consegue um total de 20.524 espectadores .
Conheço bem (há mais de 30 anos, para ser exacto) o modelo de difamação do trabalho crítico que quer fazer crer que quem sustenta uma perspectiva negativa sobre um filme português espera que ela seja “confirmada” pela performance comercial (também negativa) do mesmo filme. Sobre tal estupidez nunca houve muito a dizer, a não ser que escrever sobre cinema é um labor específico, de resultados certamente discutíveis, mas cuja pertinência argumentativa nada tem a ver com índices meramente económicos. Como se, num caso oposto, pudesse fazer sentido menorizar um filme como O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, por ter sido, na altura do seu lançamento, um desastre de bilheteira...
A questão que vale a pena discutir é de outra natureza. Decorre do discurso, implícito ou explícito, que quase sempre acompanha o aparecimento de filmes com o mesmo tipo de “estratégia para o sucesso”. Esses seriam filmes realmente feitos “para o público”, sendo sancionados pelo arrastamento “automático” de esmagadoras multidões. Há mesmo cineastas portugueses que, ao longo dos tempos, foram regularmente insultados por não fazerem filmes “desses”. Manoel de Oliveira [foto] sempre foi um alvo privilegiado dessa cobardia argumentativa, sendo de estranhar que as respectivas vozes tenham, ultimamente, escolhido o silêncio.
Tentar reduzir os muitos dramas do cinema português a uma espécie de causa/efeito entre índices de bilheteira e “legitimidade” para filmar é uma forma de chantagem. Na prática, apenas tem atrasado a análise (e a concretização) de soluções que possam garantir a máxima diversidade de propostas e estilos.
Claro que nenhuma cinematografia pode viver alheada da sua relação com os públicos (no plural, entenda-se, isto é, não esquecendo que os espectadores não são um “rebanho” de comportamentos iguais e repetitivos). Em todo o caso, pretender equacionar os muitos problemas que envolve a criação de uma estrutura de produção minimamente estável apenas através dos números abstractos das salas é empurrar o cinema para um infantilismo político (e de política cultural) que, em última análise, prejudica tudo e todos. A defesa do direito de filmar de um qualquer cineasta (por exemplo: Leonel Vieira) não se pode compadecer com tal infantilismo.