Em 2006 foram protagonistas do que de melhor a música indie nos deu ao apresentar em Return Of The Cookie Mountain uma perfeita banda sonora para uma etapa da história da invenção musical na qual se cruzam linguagens e conceitos em busca de novas identidades para a velha canção. Dois anos depois, e agora que o mundo reparou que havia agitação musical no bairro de Brooklyn (onde estes senhores, e muitos outros mais, há já algum tempo trabalhavam), os TV On The Radio regressam para mostrar que continuam na dianteira deste processo de reinvenção de velhas ideias sob novas formas. E em Dear Science têm, sem dúvidas, um dos grandes discos do ano! Um primeiro contacto com o álbum, seja através do irresistível single de avanço que é Golden Age (puro prazer ‘disco’ na forma de suculento rebuçado pop), seja pelo convidativo Halfway Home (épico que abre o alinhamento) parece sugerir que o grupo estreitou o horizonte que os discos anteriores sugeriam e optou por um caminho que ecoa com mais intensidade uma vontade de dar corpo a uma puslão ‘disco’ e espaço a outros temperos africanos antes sugeridos, mas não tão intensamente focados. Dear Science, contudo, acaba por nos colocar num ponto de observação sobre os seus universos de referência na verdade não muito distante do que havia ditado as opções do álbum anterior. Ou seja, a versatilidade e surpresa não se perdem. Pelo contrário! Em dois anos, contudo, o grupo mostrou vontade em aperfeiçoar uma abordagem mais metódica à composição, revelando Dave Sitek um gosto mais claro pela reflexão e polimento da arte final da produção. O que antes era um efervescente festim de ideias transforma-se agora em peças de arquitectura mais ponderada, em formas mais claras, em melodias e ritmos que sabem bem que trilho seguir, em vozes que as abordam com a segurança de um saber que só a experiência permite conquistar. No altar das heranças maiores aqui citadas continuam evidentes as figuras de David Bowie e dos Talking Heads, ambos evocados nas etapas fundamentais que semearam grandes ideias em finais da década de 70. O Prince entre a pop e a música negra dos seus melhores dias em 80 não está longe... Estas são, contudo, as cerejas sobre um bolo de sabores diversos, todavia bem arrumados numa montra gourmet que mostra uma capacidade de integrar os muitos ingredientes em jogo, ora em piscar de olho ao funk, ora aceitando memórias da grande tradição soul... Dear Science poderá não obter o impacte de Return Of The Cookie Mountain na paisagem em seu redor, mas é mais um passo que reafirma os TV On The Radio como uma das bandas de referência desta década.
TV On The Radio
“Dear Science”
4AD / Popstock
4 / 5
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Foi muitas vezes apontado como o género “maldito”. Houve até, na América de finais de 70, uma fogueira de desagravo na qual se queimaram singles e álbuns. Mas a verdade é que o ‘disco’ parece ter mais vidas que os gatos. E, de tempos a tempos, eis que regressa ao presente com sabor a reinvenção cativando novos admiradores e, naturalmente, revelando novos artesãos dessa velha arte com raiz nas primeiras discotecas dos anos 70. O norueguês Peter Lindstrom é, entre a mais recente geração de cultores do género, uma figura de absoluta referência. Em gravações conjuntas com Prins Thomas ou em máxi singles vários, alguns entretanto reunidos em It’s A Feedelity Affair, tem explorado as potencialidades de uma linguagem, reinventando-a, sem a caução da nostalgia, segundo os contextos que o tempo vai colocando pela nossa frente. 2008 assiste finalmente ao que há muito se esperava: a edição de um primeiro álbum de originais por si assinado. Where You Go I Go Too, que nos propõe “apenas” três (longas) faixas, é um interessante depoimento de evolução na continuidade face à obra que já revelou em máxi-single. Há quem lhe chame space disco. Podemos, invocando a memória do que se escutou em inícios de 90 na primeira grande “ressaca” da house, chamar-lhe ambient disco... As composições revelam um gosto pela experimentação de formas que transcendem a lógica da canção e aproximam-se mais da liberdade ensaiada pelos longos depoimentos instrumentais em discos dos Tangerine Dream ou Jean Michel Jarre nos anos 70 que dos paraísos ‘disco’ a 45 rotações que a sua música frequentemente evoca. Na verdade, mantém-se evidentes as figuras tutelares que já se sentiam em discos anteriores, nomeadamente Giorgio Moroder e Patrick Cowley. Deles parte agora para um desafio que pede disponibilidade e tempo. E desenha paisagens que evoluem suave e gradualmente, reinventando velhos códigos sob novas formas. Não é a sua obra-prima, mas é um dos grandes discos de música electrónica deste ano.
Lindstrom
“Where You Go I Go Too”
Feedelity
4 / 5
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Com uma personalidade narrativa muito peculiar, e sem esconder o gosto pelo uso da canção como força crítica, aos 65 anos, Randy Newman é uma referência da canção norte-americana. Mas, apesar da longa e respeitada carreira, que deu primeiros passos a compor para outras vozes em 1961 é, entre nós, essencialmente conhecido ou pela memória dos álbuns que gravou na década de 70 ou pelas bandas sonoras de filmes como Toy Story, Carros ou Monstros e Companhia, através dos quais ganhou nova visibilidade global nos últimos anos. Há cinco anos, estreando-se no catálogo da distinta Nonesuch, apresentou The Randy Newman Songbook, Vol 1, um conjunto de regravações, em novos arranjos, de velhas canções. Agora, Harps and Angels, o seu primeiro registo de originais desde 1999, dá continuidade ao reencontro do músico com os discos. E que lhe está a valer merecidos elogios de reconhecimento geral. Harps & Angels apresenta um Randy Newman a viver um novo momento de excepção e atento ao presente. De certa forma um sucessor do álbum que editou em 1999 (o seu mais recente disco de inéditos). Naquele que é o seu 12º álbum de originais, Newman retoma um dispositivo ficcional característico de alguns dos seus discos clássicos dos anos 70. Cria uma personagem de ficção e, através dela, olha o mundo que conhece. A sátira é recurso frequente, num álbum que não deixa de reflectir sobre a América da era Bush. Canções como A Few Words In Defense Of Our Country ou A Piece Of the Pie são exemplos de um olhar político que ganha particular interesse em ano de eleições. As composições reflectem heranças clássicas da canção americana, do dixieland e outros temperos de New Orleans aos blues, visitando mesmo memórias de um Cole Porter. Elegante e provocador. Ou seja, Randy Newman no seu melhor.
Randy Newman
“Harps & Angels”
Nonesuch / Warner
4 / 5
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Nascidos há poucos anos entre amigos e colegas num campus universitário (em concreto o da Syracuse University, no estado de Nova Iorque), os Ra Ra Riot há já algum tempo mereciam atento acompanhamento pela comunidade indie. Surgiram ao mesmo tempo que os Vampire Weekend, partilham inclusivamente algumas referências, mas levaram mais tempo a chegar a ouvidos mais distantes… Um EP, em 2007, garantiu-lhes o desafio para experimentar a estrada ao lado de nomes como os Editors ou Art Brut. The Rhumb Line, o album, que chega alguns meses depois dos Vampire Weekend e assim garante saudável distanciamento (e o eventual apontar de “colagem”) confirma agora as expectativas e garante um primeiro seguro passo para uma carreira que tem ainda uma agenda de trabalhos e conquistas pela frente. Pela alma destas dez canções (a conta certa para um album), correm referências e vivências características de quem formou o gosto ao sabor dos melhores discos e concertos de bandas indie rock dos nossos tempos. A presença frequente de um violino e de um violoncelo sublinham depois o demarcar de uma personalidade que, um ano depois do EP de estreia, se mostra mais polida, atenta ao elegante prazer dos arranjos. Não procuram a imponência sinfónica de uns Arcade Fire, antes uma busca de uma personalidade pop eloquente, ponto no qual se apresentam num mesmo patamar de intenções que os quase vizinhos Vampire Weekend. Nota de referência para uma soberba versão de Suspended In Gaffa, um velho clássico de Kate Bush. Dedicado ao baterista da banda, desaparecido em 2007, o album vinca sobretudo uma postura de celebração da vida. Optimista, nunca escapista, pés na terra, mas avesso à rendição às sombras que o presente lançam sobre o mundo, The Rhumb Line é um belo ponto de partida. Uma das grandes estreias do ano. E, sem dúvida, uma banda para continuar a acompanhar…
Ra Ra Riot
“The Rhumb Line”
Barsuk Records
3 / 5
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Muitos álbuns ao vivo não são mais que episódios oportunistas em carreiras que, sem novidade pela frente, assim propõem algo que contraria o silêncio em tempo de compasso de espera. Muitos são também, e apenas, o reflexo de concertos nos quais mais não acontece que o levar a cena das canções já conhecidas dos discos, em muitos dos casos tentando a banda não mudar muito o que das canções já a plateia escutara. Mas há quem opte pela surpresa e que, ao palco, goste de levar reinvenções do que os discos de estúdio antes mostraram. Seguindo o exemplo superlativo de Prince, que raramente apresenta a mesma forma de abordar velhas canções nas sucessivas digressões, os Fiery Furnaces são conhecidos pelo trabalho de recriação em palco do que antes nos haviam dado em álbuns de estúdio, sempre com vontade de experimentar a novidade. Cortam canções aos pedaços, intercalam umas entre as outras, não para criar novas abordagens ao velho conceito de medley, mas para lhes dar nova vida, enquanto fragmentos de uma nova realidade maior: o concerto. Remember é um retrato em disco duplo, desta opção de palco. Porém, em vez de documentar um concerto, permitindo assim o contemplar de destas mecânicas de transformação, o disco resolve operar semelhante lógica às diversas gravações de concertos que a banda tinha em arquivo. Colagem de colagens, reinventa os documentos de palco para deles criar uma obra que assim se afasta do retrato do real, representando antes nova manobra de acção em estúdio... Nada contra a opção. Porém, o resultado final (que se poderia resumir num único CD) traduz um fastidioso sem-fim, uma lenga-lenga de pedacinhos de canções e de fragmentos de gravações ao vivo. Naturalmente é um objecto curioso enquanto depoimento artístico e, sobretudo, como manifesto de subversão do conceito de “gravação ao vivo”. Mas no fim revela-se absolutamente cansativo enquanto proposta de audição em sequência.
Fiery Furnaces
“Remember”
Thrill Jockey / Mbari
2 / 5
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Também esta semana:
David Bowie (best of), Bomb The Bass, Soft Cell (reedição), Richard Barbieri, The Coral (best of), Noah and the Whale, Carbon/Silicon, Philip Glass (caixa 10 CD), John Adams, Tori Amos (live), New Order (reedições), David Vandervelde, Spinto Band, Thievery Corporation, A.S. Mutter (Bach, Gubaidulina), Buraka Som Sistema, I’m From Barcelona
Brevemente:
29 de Setembro: Pontos Negros, Mafalda Arnauth, Mercury Rev, Ani di Franco, Robert Fripp, 808 State (reedições), Tina Turner (best of), U2 (reedição), OMD (best of + DVD), Ultravox (reedições), John Foxx (best of)
6 de Outubro: Antony and The Johnsons (EP), Of Montreal, Bob Dylan (bootleg series), Clash, Oasis, Lambchop, St Etienne (best of), John Foxx (reedições), Lila Downs, Alex Beaupain
13 de Outubro: Okkervil River, Those Dancing Days, Deerhof, Lucinda Williams, Grateful Dead (reedição), Buena Vista Social Club (live), Tilly & The Wall, Nitin Sawhney,
Outubro: The Sea and Cake, Kaiser Chiefs, The Cure, Los Campesinos, Bloc Party, The Move,
Novembro: David Byrne + Brian Eno, The Smiths (best of), Paul Weller (BBC sessions), The Killers, Belle & Sebastian (BBC Sessions), Grace Jones