segunda-feira, setembro 29, 2008

Para não esquecer Paul Newman

A morte de Paul Newman desencadeou uma onda de comoção. Símbo-lo exemplar da idade de ouro de Hollywood e grande referência huma-nista, o seu trabalho foi recordado nos mais diversos quadrantes. Eis algumas sugestões de leitura:

>>> Obituário: The New York Times.
>>> Obituário: The Hollywood Reporter.
>>> Obituário e comentários: Le Monde.
>>> Depoimentos de personalidades de Hollywood: ABC News.
>>> The Huffington Post: memória de Karen Ocamb.
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O texto que se segue foi publicado no Diário de Notícias (28 de Setembro), com o título 'Para não esquecer Hollywood'.

No filme Cortina Rasgada (1966) [Torn Curtain - cartaz], de Alfred Hitchcock, há uma célebre sequência em que Paul Newman, na pele de um cientista americano, consegue roubar uma fórmula secreta a um cientista da Alemanha de Leste. Convém lembrar que tudo isso acontece em plena Guerra Fria, transformando o diálogo académico num inevitável confronto político e militar. De facto, Newman ignora por completo os estudos que o seu rival tem desenvolvido. Escreve uma fórmula sem nexo para explicar como os americanos encontraram a “solução”: ferido no seu orgulho, o alemão... revela-lhe a fórmula correcta.
Rezam as crónicas que as relações entre Hitchcock e Newman não foram pacíficas. Compreende-se porquê: o mestre do suspense vinha de uma escola de grande austeridade de representação, enquanto Newman, formado na interiorização emocional do Actors Studio (a par de outros símbolos incontornáveis dos anos 50 como James Dean e Marlon Brando), procurava sempre os segredos da “motivação” da personagem. Seja como for, o resultado é fulgurante: Newman consegue inscrever no ecrã um espantoso misto de agressividade intelectual, convicção política e perturbação emocional.
Tudo isso pode condensar a sua herança e também a vitalidade de um modelo de representação que marca toda a história moderna do cinema americano. No momento da morte de Newman, talvez seja importante lembrar aos espectadores mais jovens que a ideia (?) segundo a qual Hollywood é uma colecção de figurinhas de anúncio de shampoo, tipo Orlando Bloom, com muitos efeitos especiais a explodir à volta, não só é injusta em relação ao presente como favorece uma obscena ignorância face a uma riquíssima história de mais de um século (desgraçadamente, esse tipo de visão é muitas vezes alimentado pelas mais caricatas formas de “jornalismo”).
Newman pertence a um espaço criativo que nasce do cruzamento de duas componentes fundamentais: primeiro, uma fortíssima relação criativa com o mundo do teatro e, em particular, com as lições práticas e teóricas do Método de Stanislawski; depois, a consciência, a um tempo artística e crítica, da necessidade de reconversão das regras dos géneros típicos da produção das décadas de 30 e 40. Por alguma razão, um dos primeiros heróis interpretados por Newman foi Billy the Kid, personagem lendária do Oeste: em Vício de Matar (1958) [foto], sob a direcção de Arthur Penn, o seu heroísmo surgia rasgado por todas as emoções e vulnerabilidades. Nos nossos tempos de “super-heróis”, quase ninguém se lembra da beleza desse cinema.