Continuam a surgir no mercado do DVD muitas preciosidades do período clássico. E continua ingloriamente (e comercialmente) desprotegidas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 de Agosto) com o título 'Quem se lembra de Barbara Stanwyck?'.
Há dias, vi a edição em DVD de The Miracle Woman, espantoso filme americano de 1931 (lançado com o título português A Mulher Miraculosa). Nele se conta a história de Florence Fallon, filha de um pastor que, na sequência da morte do pai, descrente da sinceridade dos fiéis, se deixa perder nas mãos de um vigarista que a transforma em vedeta de uma seita religiosa apenas empenhada em explorar a ingenuidade da população.
Dirigido por Frank Capra, o filme ilustra a fase de consolidação do modelo de fábula popular que o cineasta iria consagrar em títulos lendários como Doido com Juízo (1936) ou Peço a Palavra (1939). Trata-se de colocar em cena as crenças colectivas a partir do tema nuclear da liberdade individual. Neste caso particular, há um claro subtexto político que nos remete para o período da Grande Depressão, sobretudo pelo modo como pressentimos no colectivo social as marcas de um tempo de profundo desencanto.
The Miracle Woman é também um fascinante sintoma de um período de muitas convulsões em Hollywood: por um lado, estamos perante um exemplo pioneiro de utilização do sonoro; por outro lado, o filme é anterior às restrições temáticas e figurativas do Código Hays (posto em prática pela própria indústria a partir de 1934), contendo alguns sinais “selvagens” de um cinema que ainda não se tinha auto-censurado (o que, entenda-se, não exclui o facto de as décadas seguintes, com todas as suas diferenças e contradições, constituirem a idade de ouro de Hollywood).
Poderá perguntar-se, então, se este filme não está a ser um acontecimento central na actual dinâmica do mercado do DVD. A resposta é claramente negativa. E está longe de corresponder a um caso isolado. Mesmo não esquecendo que a oferta se tem diversificado imenso nos últimos anos, continuamos a ter um mercado dominado pelos títulos que, seis meses antes, estiveram nas salas...
Podemos até lembrar que Capra foi, na sua época áurea, o equivalente a Steven Spielberg nos anos 70/80, quer dizer, um autor cujo trabalho condensava um conceito estético e industrial de cinema popular. Seja como for, nada disso parece poder contrariar o facto de o cinema “antigo” ser regularmente tratado como uma bizarra curiosidade museológica.
E que dizer da presença de Barbara Stanwyck (a actriz que interpreta a personagem de Florence)? Lembrar que ela foi uma das grandes damas do cinema clássico americano? Lembrar que a candura original da sua imagem, ainda bem patente em The Miracle Woman, se foi transfigurando em símbolo cru de todas as perversidades do espírito humano? Lembrar, lembrar... Mas quem se lembra de Barbara Stanwyck?
Vivemos nesta equívoca super-abundância de imagens. É bem certo que temos possibilidade de acesso a “tudo” o que se produz, incluindo o cinema mais remoto. O certo é que quase nada disso se traduz num conhecimento real do património, nomeadamente dos filmes. A maioria dos adolescentes atraídos pelas notícias do Rolls Royce de Cristiano Ronaldo ignoram olimpicamente (vem a propósito...) o nome de Barbara Stanwyck. Na verdade, vivem massacrados por uma cultura mediática que, todos os dias, trabalha para que tenham cada vez menos memória. Do cinema e do resto.
Há dias, vi a edição em DVD de The Miracle Woman, espantoso filme americano de 1931 (lançado com o título português A Mulher Miraculosa). Nele se conta a história de Florence Fallon, filha de um pastor que, na sequência da morte do pai, descrente da sinceridade dos fiéis, se deixa perder nas mãos de um vigarista que a transforma em vedeta de uma seita religiosa apenas empenhada em explorar a ingenuidade da população.
Dirigido por Frank Capra, o filme ilustra a fase de consolidação do modelo de fábula popular que o cineasta iria consagrar em títulos lendários como Doido com Juízo (1936) ou Peço a Palavra (1939). Trata-se de colocar em cena as crenças colectivas a partir do tema nuclear da liberdade individual. Neste caso particular, há um claro subtexto político que nos remete para o período da Grande Depressão, sobretudo pelo modo como pressentimos no colectivo social as marcas de um tempo de profundo desencanto.
The Miracle Woman é também um fascinante sintoma de um período de muitas convulsões em Hollywood: por um lado, estamos perante um exemplo pioneiro de utilização do sonoro; por outro lado, o filme é anterior às restrições temáticas e figurativas do Código Hays (posto em prática pela própria indústria a partir de 1934), contendo alguns sinais “selvagens” de um cinema que ainda não se tinha auto-censurado (o que, entenda-se, não exclui o facto de as décadas seguintes, com todas as suas diferenças e contradições, constituirem a idade de ouro de Hollywood).
Poderá perguntar-se, então, se este filme não está a ser um acontecimento central na actual dinâmica do mercado do DVD. A resposta é claramente negativa. E está longe de corresponder a um caso isolado. Mesmo não esquecendo que a oferta se tem diversificado imenso nos últimos anos, continuamos a ter um mercado dominado pelos títulos que, seis meses antes, estiveram nas salas...
Podemos até lembrar que Capra foi, na sua época áurea, o equivalente a Steven Spielberg nos anos 70/80, quer dizer, um autor cujo trabalho condensava um conceito estético e industrial de cinema popular. Seja como for, nada disso parece poder contrariar o facto de o cinema “antigo” ser regularmente tratado como uma bizarra curiosidade museológica.
E que dizer da presença de Barbara Stanwyck (a actriz que interpreta a personagem de Florence)? Lembrar que ela foi uma das grandes damas do cinema clássico americano? Lembrar que a candura original da sua imagem, ainda bem patente em The Miracle Woman, se foi transfigurando em símbolo cru de todas as perversidades do espírito humano? Lembrar, lembrar... Mas quem se lembra de Barbara Stanwyck?
Vivemos nesta equívoca super-abundância de imagens. É bem certo que temos possibilidade de acesso a “tudo” o que se produz, incluindo o cinema mais remoto. O certo é que quase nada disso se traduz num conhecimento real do património, nomeadamente dos filmes. A maioria dos adolescentes atraídos pelas notícias do Rolls Royce de Cristiano Ronaldo ignoram olimpicamente (vem a propósito...) o nome de Barbara Stanwyck. Na verdade, vivem massacrados por uma cultura mediática que, todos os dias, trabalha para que tenham cada vez menos memória. Do cinema e do resto.