Será que a cultura televisiva está a matar o próprio lugar fundador do cinema, isto é, a sala escura? Este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Junho), com o título 'Elogio dos filmes e das salas de cinema'.
Em 2007, para comemorar a 60ª edição do Festival de Cannes, o presidente do certame, Gilles Jacob convidou 33 autores de todo o mundo a rodar um pequeníssimo filme (3 minutos) sobre os sentimentos que hoje lhes inspira a sala de cinema. O que é? Como a encaramos? Como a ocupamos? Ou ainda: na idade triunfante do DVD, que valor damos ao espaço mais tradicional de consumo dos filmes?
O resultado deu origem à longa-metragem Chacun Son Cinéma, apresentada como “filme oficial” das comemorações do ano passado. Embora então lançado em DVD, o filme foi reeditado este ano, no momento da 61ª edição (14/25 Maio), incluindo uma série de extras: um documentário, Chacun son Entretien, com depoimentos dos cineastas implicados no projecto; as versões longas de alguns episódios (Alejandro González Iñárritu, Hou Hsiao Hsien, Michael Cimino e Elia Suleiman); e ainda o episódio de David Lynch (Absurda) que, por atraso na pós-produção, não tinha sido incluído no alinhamento inicial.
Mais do que nunca, o resultado tem tanto de fascinante como de inquietante. Isto porque a grande maioria dos cineastas encena pequenas ficções que têm lugar em salas mais ou menos vazias e abandonadas. David Cronenberg [foto em cima] vai mesmo ao ponto de filmar o suicídio do “último judeu” (interpretado por ele próprio) na “última sala de cinema do mundo”, tudo em transmissão típica de “reality show”. Para bom entendedor...
O russo Andrei Konchalovsky mostra a velha empregada da bilheteira de um cinema que se transforma na espectadora solitária do filme em cartaz (Oito e Meio, de Federico Fellini); o italiano Nanni Moretti deambula por salas sem ninguém, enquanto recorda os filmes que lá viu; o canadiano Atom Egoyan filma o diálogo, via telemóvel, de dois espectadores em salas diferentes (numa passa Viver a Sua Vida, de Jean-Luc Godard, noutra The Adjuster, do próprio Egoyan). Apesar de tudo, são os que revisitam o passado que se mostram mais crentes ou, pelo menos, mais divertidos: é o caso do chinês Zhang Yimou, evocando uma projecção na praça de uma aldeia, ou ainda Manoel de Oliveira [foto], em tom burlesco de filme mudo, encenando o bizarro encontro entre Nikita Kruchtchev e o Papa João XXIII.
No documentário Chacun son Entretien, a neozelandesa Jane Campion coloca de forma particularmente sugestiva a questão da relação com a sala de cinema. Lembra ela que, em muitos casos, mais do que dos filmes da sua juventude, se recorda das salas em que os viu e até das ruas por que era preciso passar para lá chegar. E acrescenta que, com um DVD, não se está em lugar nenhum... Na verdade, não se trata de demonizar os suportes alternativos, cada vez mais importantes na vida económica do cinema (repito, aliás, que me estou a referir a um filme já disponível em DVD). Trata-se, isso sim, de voltar a lembrar que a preservação das salas da cinema corresponde a algo mais do que um mero problema de marketing. O que está em jogo tem a ver com uma dimensão cultural específica e, em última instância, com um modo secular de viver as imagens (e com as imagens). Como sugere Cronenberg, no dia em que já não houver salas de cinema, estaremos perante o apocalipse televisivo.
Em 2007, para comemorar a 60ª edição do Festival de Cannes, o presidente do certame, Gilles Jacob convidou 33 autores de todo o mundo a rodar um pequeníssimo filme (3 minutos) sobre os sentimentos que hoje lhes inspira a sala de cinema. O que é? Como a encaramos? Como a ocupamos? Ou ainda: na idade triunfante do DVD, que valor damos ao espaço mais tradicional de consumo dos filmes?
O resultado deu origem à longa-metragem Chacun Son Cinéma, apresentada como “filme oficial” das comemorações do ano passado. Embora então lançado em DVD, o filme foi reeditado este ano, no momento da 61ª edição (14/25 Maio), incluindo uma série de extras: um documentário, Chacun son Entretien, com depoimentos dos cineastas implicados no projecto; as versões longas de alguns episódios (Alejandro González Iñárritu, Hou Hsiao Hsien, Michael Cimino e Elia Suleiman); e ainda o episódio de David Lynch (Absurda) que, por atraso na pós-produção, não tinha sido incluído no alinhamento inicial.
Mais do que nunca, o resultado tem tanto de fascinante como de inquietante. Isto porque a grande maioria dos cineastas encena pequenas ficções que têm lugar em salas mais ou menos vazias e abandonadas. David Cronenberg [foto em cima] vai mesmo ao ponto de filmar o suicídio do “último judeu” (interpretado por ele próprio) na “última sala de cinema do mundo”, tudo em transmissão típica de “reality show”. Para bom entendedor...
O russo Andrei Konchalovsky mostra a velha empregada da bilheteira de um cinema que se transforma na espectadora solitária do filme em cartaz (Oito e Meio, de Federico Fellini); o italiano Nanni Moretti deambula por salas sem ninguém, enquanto recorda os filmes que lá viu; o canadiano Atom Egoyan filma o diálogo, via telemóvel, de dois espectadores em salas diferentes (numa passa Viver a Sua Vida, de Jean-Luc Godard, noutra The Adjuster, do próprio Egoyan). Apesar de tudo, são os que revisitam o passado que se mostram mais crentes ou, pelo menos, mais divertidos: é o caso do chinês Zhang Yimou, evocando uma projecção na praça de uma aldeia, ou ainda Manoel de Oliveira [foto], em tom burlesco de filme mudo, encenando o bizarro encontro entre Nikita Kruchtchev e o Papa João XXIII.
No documentário Chacun son Entretien, a neozelandesa Jane Campion coloca de forma particularmente sugestiva a questão da relação com a sala de cinema. Lembra ela que, em muitos casos, mais do que dos filmes da sua juventude, se recorda das salas em que os viu e até das ruas por que era preciso passar para lá chegar. E acrescenta que, com um DVD, não se está em lugar nenhum... Na verdade, não se trata de demonizar os suportes alternativos, cada vez mais importantes na vida económica do cinema (repito, aliás, que me estou a referir a um filme já disponível em DVD). Trata-se, isso sim, de voltar a lembrar que a preservação das salas da cinema corresponde a algo mais do que um mero problema de marketing. O que está em jogo tem a ver com uma dimensão cultural específica e, em última instância, com um modo secular de viver as imagens (e com as imagens). Como sugere Cronenberg, no dia em que já não houver salas de cinema, estaremos perante o apocalipse televisivo.