Edição de 18 de Junho de 1968
Das ruas à universidade, das opções económicas às práticas culturais, o Maio 68 abalou todas as certezas e todas as estruturas. Quarenta anos depois, como é que o repensamos e revivemos? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Maio), com o título 'Ruas e ideias de Maio 68'.
Num texto disponível no site do jornal Libération, Eric Aeschimann resume de forma exemplar as inevitáveis ambiguidades da actual conjuntura de evocação das convulsões sociais de Maio 68, em França. Lembra ele que a data atrai três tipos de atitudes: trata-se de um “filão comercial”, suscita uma “querela de heranças” e, politicamente, explicita uma “batalha de projectos”.
Mas há mais uma derivação possível da “nostalgia” corrente de Maio 68. É algo que tem a ver com a banalização das efemérides no espaço mediático em que vivemos, em particular através das linguagens televisivas (veja-se, por exemplo, o processo de secagem ideológica a que, entre nós, foi sujeita a herança necessariamente plural e contraditória do “25 de Abril”). Assim, por vezes, a evocação de Maio 68 — e, em boa verdade, de muitas datas marcantes da história mais ou menos recente — tende a favorecer uma espécie de prolongamento do imaginário dos “famosos” imposto pela sempre conformista imprensa cor de rosa (em França, curiosamente generalizada atraves de um rótulo de raiz inglesa: “people”). No fundo, vende-se Maio 68 como um “sítio” onde alguns estiveram e que, como qualquer atracção mais ou menos turística, pode ser descrito em termos pitorescos...
O problema não está exactamente na questao de classificar Maio 68 como uma viragem “revolucionária” ou um contragolpe “conservador”. Em boa verdade, a sua contraditória vitalidade faz com tenha sido ambas as coisas (e muitas mais...). O problema, desgraçadamente típico do nosso tempo mediático e mediatizado, decorre da infinita banalização da história colectiva: promovem-se os factos históricos como se fossem obrigatórios e lineares produtores de “sentido”. No fundo, tenta-se apaziguar a dimensão irracional que a história também contém, reduzindo-a a “coisas” que significam “isto” ou “aquilo”. Neste caso, em particular, perde-se desde logo a herança mais difícil, e também mais cruel, de Maio 68. A saber: a de que a actividade humana é também feita de muitos gestos que não se esgotam em nenhum sentido linear, muito menos determinista.
Talvez resida aí um dos maiores dramas da hiper-informação em que vivemos. Claro que seria simplesmente estúpido demonizar “todo” o espaço mediático apenas porque há uma imprensa tablóide que simplifica tudo aquilo em que toca ou um estilo de fazer televisão que, dia após dia, trabalha na patética infantilização dos seus espectadores: a democratização da informação (valor inquestionável) faz-se também de muitos desequilíbrios, atrai muitas contradições e, por vezes, gera os seus próprios monstros. O drama decorre, afinal, da tipificação de comportamentos, da esquematização de situações e, enfim, da própria normalização (humana e emocional) das convulsões históricas.
Olhar para as imagens das ruas de Maio 68 é, de uma só vez, pressentir as ideias que nelas se materializaram e especular através das dúvidas e perplexidades que delas nasceram. Com alguma ironia, porventura autorizada pelo “espírito” de Maio 68, importa lembrar que nunca compreenderemos Maio se não soubermos avaliar como entrámos em... Junho.
Foto de Jean-Claude Seine
Maio 68 - Manifestação de estudantes na rua Saint Michel