quinta-feira, maio 08, 2008

Godard por Miéville

O nome de Anne-Marie Miéville é indissociável do de Jean-Luc Godard: o filme Depois da Reconciliação aí está para o demonstrar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Maio), com o título 'Sob o signo de Jean-Luc Godard'.

O nome de Anne-Marie Miéville terá começado a ser referido com alguma frequência quando, em 1984, surgiu o filme Eu Vos Saúdo, Maria, de Jean-Luc Godard. O polémico (e fascinante) trabalho sobre a herança mitológica do nome "Maria" era precedido de uma curta-metragem, intitulada O Livro de Maria, realizada por Miéville. Nela se antecipava a interrogação nuclear do filme. A saber: que é isso de identidade feminina, como vivê-la, como filmá-la?
Vêm estas memórias a propósito do lançamento, em DVD, de uma longa-metragem da mesma cineasta, por certo um dos muitos títulos que a voracidade do mercado irá "esconder" em prateleiras mais ou menos discretas... Chama-se Depois da Reconciliação, tem data de 2000 e permite-nos compreender duas coisas diferentes, não necessariamente contraditórias: primeiro, que a obra de Miéville mantém uma relação umbilical com o universo "godardiano", em particular através da obsessão pelas relações a dois e pela sua constante e magoada problematização; depois, que estamos perante um trabalho genuinamente pessoal em que a afirmação do feminino envolve, de uma só vez, uma reivindicação moral e um sentido político. Tudo isto intensificado pelo facto de Miéville ser uma das actrizes principais do filme, para mais contracenando com o próprio Godard.
Em boa verdade, o papel de Anne-Marie Miéville na trajectória criativa de Jean-Luc Godard é muito mais remoto. Acima de tudo, decorre de uma aliança ligada aos tempos primitivos em que o cineasta de O Acossado (1959) Made in USA (1966) e Tudo Vai Bem (1972) compreendeu que as técnicas de vídeo iriam alterar, para o melhor ou para o pior, não apenas os métodos de filmagem, mas a própria percepção da intimidade humana. Dito de outro modo: a descoberta do vídeo como "alternativa" de produção e expressão não é um fenómeno dos anos 90 do século passado, uma vez que se inicia, de forma fulgurante, num filme muito pouco lembrado (e, ao que julgo saber, não disponível em DVD): Número Dois, título "godardiano" de 1975 em que Miéville aparece como co-autora do argumento. Depois disso, Miéville surge mesmo como co-realizadora das séries em vídeo feitas por Godard para a televisão francesa, ou seja, Six Fois Deux (1976) e France Tour Détour Deux Enfants (1977), continuando a participar com diversas funções (realização, argumento, montagem, cenografia) em momentos diversos da filmografia do cineasta.
Os preconceitos correntes, incluindo os de raiz machista, tenderão a arrumar alguém como Anne-Marie Miéville na condição de "dependente" do seu parceiro masculino de criação. Aliás, é bom que se diga que tal machismo, sobretudo nas suas formas mais "risonhas", é todos os dias sustentado por muitos discursos com enorme implantação e poder social (a começar por algumas formas de publicidade televisiva). Ironicamente, qualquer mente minimamente disponível compreenderá que um filme como Depois da Reconciliação começa onde começam muitas telenovelas: no reconhecimento da crise do espaço familiar tradicional e da dificuldade de sustentar uma relação (conjugal, afectiva, sexual). As diferenças decorrem do simples respeito pela complexidade afectiva de cada ser humano.