sábado, maio 10, 2008

Falar na primeira pessoa

O que é, afinal, enfrentar uma câmara, ter o horário nobre por sua conta e... comunicar? Este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Maio), com o título 'Malato: o equívoco'.

Fala-se muito pouco das persona-lidades televisivas que apresentam programas. Em parte, compreende-se que assim seja: a fulanização dos temas televisivos é quase sempre redutora, quando mais não seja porque um programa (qualquer programa) nunca é estranho ao modo como é programado. Se as telenovelas passassem de madrugada, como passam muitos filmes, o país seria outro...
O certo é que há casos em que a “personalização” faz parte do próprio conceito do programa (e de programação). Um exemplo actual é Sexta à Noite (RTP1). Toda a sua estratégia, estrutura e até o seu logotipo remetem para uma figura central: José Carlos Malato. Em boa verdade, estamos perante um efeito tardio da crescente divulgação, sobretudo através dos canais do cabo, de talk-shows americanos centrados em figuras emblemáticas: Jay Leno, Conan O’Brien, Oprah Winfrey, etc. Vários programas portugueses tentaram reproduzir os respectivos modelos, colocando os seus apresentadores em discursos na primeira pessoa, oscilando da pura caricatura do quotidiano à abordagem de alguns temas de raiz humanista.
O equívoco de Malato nasce da confusão entre ter carisma e... fazer um programa. Entenda-se: não se trata sequer de discutir se esse carisma existe ou não. Trata-se, isso sim, de lembrar que é preciso ir para além de classificar tudo de “maravilhoso”, pedir aos convidados para dizer “mais” ou ter dificuldade em sustentar ideias simples em frases lineares. É preciso o quê? É preciso não confundir espontaneidade com ausência de trabalho. E basta assistir com um mínimo de atenção a um programa de Jay Leno para compreender que, além da riqueza de escrita que o sustenta, estamos perante uma hiper-sofisticada estrutura de espectáculo: não um evento que se confunde com uma conversa na sala de estar seja de quem for, mas que se organiza como um genuíno e complexo exercício narrativo.
Eu sei que estas palavras levarão alguns a pensar que se trata de discutir a simpatia, a dedicação ou a seriedade de José Carlos Malato. Tanto pior para mim. De facto, pensar as linguagens televisivas não é o mesmo que discutir os “estados de alma” seja de quem for.