Um dos mais activos e bem sucedidos clãs da música popular dos nossos tempos não pára de nos surpreender. Se de Loudon Wainwright III não rezam grandes memórias musicais e das “manas” Kate & Anne McGarrigle pouco se ouviu até há poucos anos, aos rebentos mais novos da família tem cabido o papel dessas “surpresas”. Revelado em finais de 90, Rufus é hoje reconhecido como uma das estrelas maiores do firmamento pop, somando uma discografia onde ainda não mora um único tiro ao lado. Para breve espera-se a estreia em álbum da meia-irmã mais nova Lucy Wainwright Roche. Por enquanto, encontramos em I Know You’re Married But I’ve Got Feelings Too, a confirmação absoluta de Martha Wainwright como voz (inclusivamente no plano criativo). Durante anos a fio, Martha pareceu contentar-se em ser apenas uma voz amiga em cena para outros protagonistas. Passou pelos discos do pai, da mãe e tia, do mano Rufus. E de nomes como Gordon Gano, Teddy Thompson ou os Snow Patrol. Em 2005, o álbum de estreia Martha Wainwright dava primeiros sinais de que em si morava mais que uma figura votada a segundos planos. Uma presença notável no concerto de tributo a Leonard Cohen que gerou o filme I’m Your Man e uma passagem inesquecível pelos palcos em que Rufus homenageava Judy Garland (com um arrepiante Stormy Weather) vincou essas mesmas sugestões. O álbum, agora, arruma de vez as ideias: Martha é uma das mais promissoras cantoras/intérpretes da sua geração. Mais elaborado, intenso e bem escrito que o álbum de estreia, espelho de uma personalidade crítica dotada de certeiro sarcasmo na hora certa (como o título já indicia), o álbum apresenta Martha formosa e segura no seu papel de protagonista. Perante uma multidão de ilustres, e aqui colaboram nomes como Pete Townshend (The Who), Donald Fagen (Steely Dan) ou Garth Hudson (The Band), além do marido Brad Albetta e de todo o clã Wainwright, Martha apresenta uma definitiva mostra de um talento que não se esgota na (soberba) voz que lhe era já há muito elogiada. Canções pop, que sabem escutar ecos de tradições várias, da folk ao rock clássico de 70 (com Kate Bush no horizonte), com cereja sobre o bolo numa belíssima versão de See Emily Play, dos Pink Floyd (fase Syd Barrett).
Martha Wainwright
"I Know You’re Married But I’ve Got Feelings Too"
Drowned In Sound / Popstock
4/5
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A Austrália sempre foi fonte de boas surpresas pop/rock. E no presente está a revelar ser a maternidade de excepções a um filão que, no eixo Europa/América do Norte, atingiu o limiar da exaustão. Quatro anos depois de iniciada uma movimentação generalizada de redescoberta dos valores pop do suculento legado do pós-punk, raros são os grupos que, mesmo sob aclamação nas primeiras manifestações, conseguem hoje fugir aos modelos nos quais acabaram fechados, numa espécie de loop temporal. Como cogumelos em terreno húmido, multiplicaram-se bandas e discos com sabor a memórias bebidas em finais de 70 e inícios de 80. Mas o que teve graça no episódio da primeira citação transformou-se entretanto num sem-fim de repetições, que sobretudo parecem satisfazer mais a sede de nostalgia que a degustação de ideias... Nada contra, se as canções forem de primeira água (como nos deram já nomes como The Killers, White Rose Movement, The Faint, Interpol ou, sobretudo, os magníficos Franz Ferdinand). Mas até entre estes já houve tiros ao lado. E nas bandas de segunda linha (dos She Wants Revenge aos Editors da vida) os escorregões têm sido dolorosos... Da Austrália, curiosamente, chegaram nos últimos tempos dois nomes que, sob idêntica carteira de referências, revelam outra ginástica pop capaz de assegurar outras molduras e telas para essas tintas (que não deixam de ser inspiradoras, sublinhe-se). Além dos Midnight Juggernauts (cujo álbum de estreia finalmente foi editado entre nós), destaquem-se agora os Cut Copy. Depois de um álbum de estreia apenas “simpático”, mais próximo do pastiche que da real intervenção autoral, eis que mostram em In Ghost Colours um vitalidade pop que, sob sugestões colhidas nas memórias de inícios de 80, faz nascer uma música com sabor a festa presente. A diferença faz-se pela assimilação de ideias escutadas na música de dança (chamemos-lhe consciência presente na idade DFA) e pela definição de um sentido de genuíno optimismo que contrasta com as sombras das referências convocadas. Não se trata de um manifesto de revolução pop (há mais novas ideias noutros azimutes). Antes, um bom exemplo de síntese, bem ajustada ao seu tempo, capaz de mostrar que a citação é mais interessante ao ser compreendida que quando é meramente vestida em jeito de máscara.
Cut Copy
"In Ghost Colours"
Modular
4 / 5
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Agora que passou o mito (mais um na indústria discográfica portuguesa) que fazia crer, a algumas grandes editoras, que a “salvação” do negócio de vender discos de música portuguesa morava no hip hop, as coisas voltam ao estado natural. Quem quis virar estrela pop, virou... Quem julgou que enganava, afinal, não enganou... E quem optou por continuar a dar largas à criação de uma personalidade criativa, independentemente de sonhos de topes e afins, acaba por ser quem nos revela as verdades maiores de um espaço que, nascido no underground, mantém viva uma capacidade em desbravar terreno que não o eleito para deleite MTV e de modas tipo chiclete. D-Mars é, como outros dignos representantes do melhor que o hip hop nacional nos tem mostrado, um exemplo desta última atitude. E, através do alter-ego Rocky Marsiano, começa a definir um espaço de experimentação essencialmente instrumental que, juntamente como o fizeram já o projecto Bulllet ou algumas criações de Sam The Kid, define caminhos que, com base nas linguagens e ferramentas do hip hop, procuram olhares diferentes dos que dominam parte do panorama actual do género. O álbum de estreia de Rocky Marsiano, em 2005, mostrava um músico que, mais que apenas capaz de saber escutar referências, revelava inteligência na escolha e assimilação de ideias que, entretanto, fez suas. Outside The Pyramid é o passo natural que se segue. Junta às artes de corte e colagem uma noção de corpo vivo (certamente nascida da vivência de experiências em palco), intensifica a presença de músicos sobre a matriz feita de beats e samples e chega mesmo a ensaiar a canção. Na raiz da ideia continua a revelar-se um gosto reverencial pelas memórias do jazz hip hop de inícios de 90, evocando o requinte de uns A Tribe Called Quest ou elegância de uns Digable Planets. Cool!
Rocky Marsiano
"Outside The Pyramid"
Loop Recordings
3 / 5
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E eis um disco... “fracturante”, como agora se diz... Ou seja, daqueles que dividem opiniões. Até mesmo entre os que o não ouviram bem, antes de dizer de sua justiça... Antes de mais, deitemos por terra o argumento “canta mal” como motivo para levantar ou baixar o polegar à estreia em álbum de Scarlett Johansson. Quantas vozes menos encorpadas fizeram alguns dos mais marcantes momentos da história da música popular? E, no sentido oposto, quantas aves raras afinadas nos deram já algumas das mais insuportáveis canções de que há memória (Celine Dion, Mariahs e afins...)?... Scarlett Johansson pode não ter as cordas vocais e os pulmões de uma diva, mas a sua estreia na música não parece ser apenas birra criativa de uma actriz mimada. É certo que é fácil escolher um ícone incontornável para, no campeonato do “diz que gosta”, se ganhar aparente respeito enquanto melómano. Mas, mais que escolher uma mão-cheia de temas de Tom Waits, o álbum Anywhere I Lay My Head revela o entendimento da cantora-actriz com uma equipa criativa notável, capaz de reinventar as canções para delas fazer nascer um conjunto esteticamente coeso e capaz de acolher a voz de quem aqui se fala. Dave Sitek, dos TV On The Radio, é talvez a figura central neste filme, com argumento de Tom Waits, que Scarlett Johansson interpreta como... uma actriz. Com David Bowie como actor secundário em algumas das melhores cenas, e participação não menos visível do guitarrista Nick Zinner (dos Yeah Yeah Yeahs), o álbum revela uma ideia concreta e consequente. O onirismo de Falling Down ou a mutação de I Wish I Was In New Orleans numa lullaby fantasmática são apenas instantes de um disco que pede atenção antes do sim ou do não. Na verdade, é mais um talvez, revelando a abordagem plástica uma concentração de soluções semelhantes entre si que revelam falta de ginástica como complemento às boas ideias no ponto de partida. Memo assim, Scarlett Johansson não envergonha ninguém. E se escutarem álbuns pop de actores como William Shatner, Nichelle Nichols ou mesmo Johnny Depp, verão porquê...
Scarlett Johansson
"Anywhere I Lay My Head"
Rhino / Warner
3 / 5
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Mais do mesmo... Ou seja, os indefectíveis vão aplaudir. Os curiosos de outros tempos, talvez escutar. E os que há muito apontam inércia nestes campos, passar bem a leste deste conjunto de canções. Fala-se dos Tindersticks e do álbum que assinala a estreia de uma nova etapa na sua carreira. Na verdade, no plano dos bastidores, nunca tanta coisa mudara antes em redor do grupo. O afastamento de Dickon Hinchcliffe (e mais outros dois músicos) em 2006 levou Stuart Staples a repensar a formação da banda. Um novo acordo editorial chegou pelo caminho. Mas, de regresso ao trabalho, o grupo reencontrou as suas marcas de identidade e nelas fechou a condução dos destinos das novas canções. As velhas obsessões por um sentido eloquência escutado em clássicos soul com orquestra há muito que abafou o decadente negrume urbano, com rugosidade herdada de descendentes do punk, que se havia escutado nas primeiras canções. Staples ainda escreve sobre a dor, a perda, o desencanto... E a voz é, como sempre, veículo perfeito para a encenação das histórias sombrias que protagoniza e corpo para o fantasma que atormenta uma alma dorida... Porém, mais soul menos soul, mais despido, mais elaborado, mais introspectivo, mais magoado, o caminho dos Tindersticks parece fechado num beco para carpir mágoas, e sem vontade de dar meia volta e procurar nova luz. The Hungry Saw revela pontuais frestas de interesse. Mas não foge à modorra entediante em que o grupo mergulhou depois de Curtains (1997).
Tindersticks
"The Hungry Saw"
Beggars Banquet / Popstock
2 / 5
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Também esta semana:
Spiritualized, Paul Weller, Pogues, Death Cab For Cutie, Moonspell, Weddinng Present, Futureheads, Byrds (reedições), Replacements (reedições), Tangerine Dream (antologia), Zutons, Philip Glass (opera), Wild Beasts
Brevemente:
2 de Junho: Ladytron, Aldina Duarte, Paul Weller, Aimee Mann, Radiohead (best of), Broadcast, Los Campesinos (ed nacional), El Perro del Mar (ed nacional), The Notwist, White Williams
9 de Junho: Coldplay, Joan As Policewoman, Fratellis, Yazoo (reedições), Mark Stewart, Beach House, Joseph Arthur, No Age (ed nacional)
16 de Junho: The Rascals, Dennis Wislon, The Feeder, The Music, My Bloody Valentine (reeedição), Herbaliser, Dead can Dance (reedições)
Junho: Infadels, David Bowie (reedição), U2 (reedições), Black Kids, Yazoo (caixa), Silver Jews, Young Gods, Weezer, No-Man
PS. O texto sobre Martha Wainwright é uma versão editada da crítica publicada no suplemento IN, da revista NS