1. O “relacionamento”. Os meios políticos (e tele-visivos) têm sido agitados pelos protestos do PSD, alegando que a contratação da jornalista Fernanda Câncio — para realizar um programa para a RTP2, sobre bairros sociais — resulta de uma forma de favorecimento pessoal. Segundo Rui Gomes da Silva, vice-presidente dos social-democratas, tal contratação não deveria existir, uma vez que Fernanda Câncio tem “um relacionamento com o primeiro-ministro”, José Sócrates. Obviamente, a procissão ainda vai no adro e vão seguir-se muitas e lamentáveis peripécias, cada uma mais deprimente do que a outra. A praça pública vai transformar-se (já está, aliás) em obsceno tribunal da vida privada — não apenas a de Fernanda Câncio, mas do próprio conceito de vida privada e da sua agonia face à pornografia dos tempos.
2. O despudor. O simples facto de se pôr em causa a dignidade profissional de uma pessoa, seja ela quem for, por causa da sua vida privada já é razão suficiente para reconhecermos (em boa verdade, confirmarmos) que vivemos uma época de violento despudor, não poucas vezes sustentado por pessoas que deviam ser os primeiros resistentes a tal degradação — para que não haja equívocos, falo da maioria das pessoas da classe política. Em todo o caso, a discussão do “caso Fernanda Câncio” interessa-me muito pouco — mal ou bem, distinguimo-nos individualmente, não apenas pelas discussões que travamos, mas também pelas discussões que (não) aceitamos travar.
3. Os afectos. O essencial da questão é, a meu ver, muito mais antigo do que este caso pontual. Aliás, não há caso nenhum... O que há, isso sim, é este nosso triste viver que foi transformado num circo mediático que vive à custa da vida dos outros — na prática, o outro é aquele que tem uma vida privada suspeita. Tudo isto resulta do triunfo ideológico — com repercussões directas na economia, nomeadamente na economia do entertainment e da imprensa — da filosofia imposta por esse crime afectivo (= contra os afectos) que é o Big Brother. Na prática, todos os afectos se tornaram ilegítimos, porque todos os afectos são susceptíveis de ser expostos, manipulados e denegridos na praça pública.
4. A inteligência. José Sócrates terá uma relação privada com Fernanda Câncio. Devo dizer que, existindo tal relação — e, sobretudo, tendo em conta as muitas especulações grosseiras que já suscitou —, me parece que seria sensato o primeiro-ministro explicitá-la publicamente. Por uma razão serenamente formal: como qualquer cidadão, José Sócrates não tem contas a prestar a ninguém sobre a esfera da sua privacidade; mas um alto dirigente político não ganha nada em “transferir” para os outros a informação mais básica sobre essa vida privada. Quando alguém começa a falar dessa vida privada, referindo-se a um suspeito “relacionamento”, isso significa que as armas da inteligência se renderam ao fogo da mediocridade.
5. A estupidez. No cerne deste “escândalo” brando, muito à maneira da branda ignomínia dos nossos brandos costumes, está um factor que, mais do que nunca, importa não iludir. Tem a ver com a indiferença e, pior do que isso, o silêncio da generalidade da classe política (incluindo o PS) sobre o horror a que chegou o espaço público da informação — e, em especial, sobre o triunfo de uma informação televisiva que todos os dias elege o fait-divers de faca e alguidar em detrimento das grandes questões do mundo contemporâneo (ou que trata estas questões como se fossem fait-divers). Era sobre isso, sobre essa galopante estupidificação mediática, que eu, como cidadão, gostaria de ouvir os nossos políticos. Não os acuso de hipocrisia, porque não me atrevo a julgar compreender todas as suas determinações e afectos. Mas choca-me a sua quotidiana ausência de coragem.
2. O despudor. O simples facto de se pôr em causa a dignidade profissional de uma pessoa, seja ela quem for, por causa da sua vida privada já é razão suficiente para reconhecermos (em boa verdade, confirmarmos) que vivemos uma época de violento despudor, não poucas vezes sustentado por pessoas que deviam ser os primeiros resistentes a tal degradação — para que não haja equívocos, falo da maioria das pessoas da classe política. Em todo o caso, a discussão do “caso Fernanda Câncio” interessa-me muito pouco — mal ou bem, distinguimo-nos individualmente, não apenas pelas discussões que travamos, mas também pelas discussões que (não) aceitamos travar.
3. Os afectos. O essencial da questão é, a meu ver, muito mais antigo do que este caso pontual. Aliás, não há caso nenhum... O que há, isso sim, é este nosso triste viver que foi transformado num circo mediático que vive à custa da vida dos outros — na prática, o outro é aquele que tem uma vida privada suspeita. Tudo isto resulta do triunfo ideológico — com repercussões directas na economia, nomeadamente na economia do entertainment e da imprensa — da filosofia imposta por esse crime afectivo (= contra os afectos) que é o Big Brother. Na prática, todos os afectos se tornaram ilegítimos, porque todos os afectos são susceptíveis de ser expostos, manipulados e denegridos na praça pública.
4. A inteligência. José Sócrates terá uma relação privada com Fernanda Câncio. Devo dizer que, existindo tal relação — e, sobretudo, tendo em conta as muitas especulações grosseiras que já suscitou —, me parece que seria sensato o primeiro-ministro explicitá-la publicamente. Por uma razão serenamente formal: como qualquer cidadão, José Sócrates não tem contas a prestar a ninguém sobre a esfera da sua privacidade; mas um alto dirigente político não ganha nada em “transferir” para os outros a informação mais básica sobre essa vida privada. Quando alguém começa a falar dessa vida privada, referindo-se a um suspeito “relacionamento”, isso significa que as armas da inteligência se renderam ao fogo da mediocridade.
5. A estupidez. No cerne deste “escândalo” brando, muito à maneira da branda ignomínia dos nossos brandos costumes, está um factor que, mais do que nunca, importa não iludir. Tem a ver com a indiferença e, pior do que isso, o silêncio da generalidade da classe política (incluindo o PS) sobre o horror a que chegou o espaço público da informação — e, em especial, sobre o triunfo de uma informação televisiva que todos os dias elege o fait-divers de faca e alguidar em detrimento das grandes questões do mundo contemporâneo (ou que trata estas questões como se fossem fait-divers). Era sobre isso, sobre essa galopante estupidificação mediática, que eu, como cidadão, gostaria de ouvir os nossos políticos. Não os acuso de hipocrisia, porque não me atrevo a julgar compreender todas as suas determinações e afectos. Mas choca-me a sua quotidiana ausência de coragem.