quarta-feira, março 26, 2008

Em conversa: Mão Morta (2/2)

Continuamos a publicação de uma entrevista (em três partes) com Adolfo Luxúria Canibal, dos Mão Morta. Este texto integral aqui publicado serviu de base a um artigo publicado na edição de 24 de Março do DN. A foto (tal como a do post anterior, do espectáculo Maldoror) foi cedida pela Cobra Discos.

Depois de Müller no Hotel Hessischer Hof, esta é uma segunda transformação vossa de um texto para palco. E, depois, do palco para disco. Maldoror reforça esse lado de vivência teatral dos próprios Mão Morta?
Sim. São aqueles discos que os pensamos não como discos mas como espectáculos. Vêm ambos de um incentivo externo, num deles a escrita do Heiner Müller, no outro a do Isidore Ducasse. Pensámo-los como espectáculo. Gravámo-los, pensando depois que poderia dar um disco. Mas não sabíamos que faria sentido só como música em disco. Mas depois do trabalho feito sentimos que tinha sentido e avançámos para a edição.

O booklet, que inclui o texto e algumas ilustrações, talvez garanta uma alternativa à fisicalidade que o palco também dá... Este disco precisava de um contexto visual diferente como objecto.
Quando se faz um disco destes normalmente usam-se as imagens que se associam ao espectáculo. Mas nós aqui fugimos a isso. Isso terá mais a ver com o DVD. Mas isto, apesar de gravado ao vivo no espectáculo, de manter inclusivamente as palmas, não é o espectáculo. É um outro objecto. Nem sequer é metade do espectáculo. Tem de existir por si, ser auto-suficiente. E por isso tem de levar um tratamento como objecto consentâneo com isso. Ou seja, um tratamento de capa, de booklet, de imagens, que tem a ver com o que a pessoa está a escutar, que possa complementar isso, mas que não tenha a ver com o espectáculo, que é outra coisa.

Haverá um DVD...
Sim, está ainda em montagem e mesmo a ser filmado. O Nuno Tudela fará um documentário sobre a digressão, que servirá como extra. Faz todo o sentido haver esses acréscimos que valorizam o objecto.

Os Mão Morta são os mesmos quando fazem este tipo de espectáculos, quando comparados com a mesma banda quando dá concertos?
Bom, os mesmos são, o trabalho é que é diferente. Há um outro tipo de concentração, de trabalho de casa, de postura. Um concerto em Paredes de Coura dos Mão Morta é diferente do que se vê no Theatro Circo ou na Culturgest. Não só por causa do espaço mas porque são concepções diferentes de espectáculo.

A experiência de adaptar Heiner Müller e, agora, os Cantos de Maldoror para teatro traz outra identidade cénica aos Mão Morta? A digressão do Nus tinha uma cenografia trabalhada...
O Nus tinha, mas as razões eram diferentes. Essa encenação partiu mais do técnico de luz. Tinha mais a ver com a exploração dos desenhos de luz que com a ideia de um espectáculo a partir do disco. É evidente que a partir dessas ideias base de luz se trabalhou um espectáculo. Mas o conceito era diferente do Müller ou deste Maldoror.

É limitativo, para quem cria a música, ter um texto de base para seguir? Isto por oposição à letra de uma canção original, que pode ser alterada à medida que a composição evolui...
Limitativo não é. Para quem compõe, e não é o meu caso, porque é mais para o Miguel, para o Vasco, para o Rafael, é diferente trabalhar uma canção a partir de um texto ou do nada, onde depois se coloca um texto. Aqui, a trabalhar textos que não são nossos, e que envolvem alguma sacralidade, um respeito, a grande preocupação deles enquanto compositores não era a de deixarem o texto respirar, darem-lhe importância. A música funciona quase como um invólucro para a música. Eles estão a trabalhar para dar o primeiro plano ao texto e não à música. E no Maldoror nota-se muito isso. A leitura interfere com o texto, o texto interfere com a música... Mas há um grande respeito pelo texto. Um máximo cuidado para que o texto não saia desvalorizado, apagado, pela música.

Se o Miguel Pedro agora propuser a adaptação de um outro livro, dá-lhe mais dez anos de espera?...
Dou-lhe com o livro na cabeça... (risos)

Há outro autor que gostassem de trabalhar?
Não há... Estas coisas acontecem de repente. O Müller, por exemplo, foi uma coisa repentina, um amor à primeira vista. Conhecia-lhe o nome mas não a obra deles antes de começarmos a trabalhá-lo. Não há assim nenhum livro que seja de cabeceira como era o caso dos Cantos de Maldoror. Há autores interessantes... Mas não temos nada pensado. Neste momento ainda temos espectáculos para terminar a tournée do Maldoror. E estamos de tal maneira dentro dele que nem queremos que nos falem num outro espectáculo. Isto são dois anos de trabalho do Maldoror, mais um ano para trás a pensar nisto. São três anos das nossas vidas mergulhados no Maldoror... Só conseguimos pensar numa coisa mais leve, mais rock’n’roll, meia bola e força. E nos próximos tempos é isso que vai acontecer.

Um próximo disco será, portanto, certamente diferente do Maldoror...
Será rock’n’roll pela certa.
(conclui amanhã)