terça-feira, março 25, 2008

Em conversa: Mão Morta (1/3)

Iniciamos hoje a publicação de uma entrevista (em três partes) com Adolfo Luxúria Canibal, dos Mão Morta, a propósito da edição do seu novo disco, Maldoror. Este texto integral aqui publicado serviu de base a um artigo publicado na edição de 24 de Março do DN. A foto (do espectáculo Maldoror) que ilustra o post foi cedida pela Cobra Discos.

Como surgiram Os Cantos de Maldoror, livro de 1869 de Isidore Ducasse (publicado sob o pseudónimo do Conde de Lautréamont) na agenda de trabalho dos Mão Morta?
A primeira menção aos Cantos de Maldoror surgiu na sequência do Müller no Hotel Hessischer Hof [em 1997]. O Miguel Pedro lançou logo a ideia que poderíamos pegar nos Cantos. Um trabalho no género do que tínhamos feito no Müller, mas com os Cantos. A hipótese foi logo recusada por mim (risos). Os Cantos eram um outro fôlego, um trabalho de grande envergadura, e eu achava que, naquela altura, nem pouco mais ou menos.

Esperaram dez anos...
E durante esses dez anos, sempre que tinha oportunidade, o Miguel metia os Cantos na conversa. Até que, depois da tournée do Nus, entrámos naquela sabática. O Miguel voltou a falar nos Cantos. Como não tínhamos nada para fazer... Sem compromisso... E essa ideia, o “sem compromisso”, fez-nos pensar. Mas quando surgiu a hipótese de reabertura do Theatro Circo [em Braga], o programador lançou-nos o desafio de fazermos um espectáculo especial. E como não tínhamos nada especial, e havia aquela ideia do “sem compromisso” dos Cantos, foi a altura. Avançámos. É evidente que não fizemos a abertura do Theatro Circo com os Cantos, que estavam longe de estar prontos. Aliás, a ideia de transpor o livro para outro tipo de linguagem e de espaço que é o palco demorou sensivelmente um ano. E só depois de congregadas condições para se poder trabalhar a um outro nível, é que as coisas começaram a andar mais depressa. E aí percebemos que precisávamos de alguém com know how de encenação. E chamámos o António Durães. Se no Müller nós tínhamos feito tudo, aqui o desafio era demasiado. Conseguimos encontrar o esquema de fazer a transposição do texto, mas não conseguíamos depois trabalhar a encenação em cima.

Já tinha lido Os Cantos de Maldoror antes das primeiras sugestões de trabalhar o livro?
Sim, foi um livro que li quando tinha uns 14 ou 15 anos. Era um livro de cabeceira. O Miguel Pedro leu-o quando formámos os Mão Morta. O Rafael também o leu quando se juntou aos Mão Morta... É um livro que todos os associamos aos Mão Morta. Para mim é um livro de cabeceira desde sempre.

O tipo de personagens e histórias relacionam-se com as figuras que foram morando nas canções dos Mão Morta?
Nos Cantos de Maldoror as figuras estão muito carregadas. A traços muito grossos, muito pesados. As personagens que foram surgindo nas histórias dos Mão Morta são mais realistas, mais quotidianas. Estas são personagens quase épicas, de subconsciente. Quase grotescas de tão carregadas.

Foram criadas em finais do século XIX. Sente que carregam o peso do tempo? Ou há nelas traços característicos que permitam uma identificação com o presente?
Têm perfeitamente características com o ser humano dos dias de hoje. No seu âmago, o ser humano não mudou. Já o traço literário das personagens, a sua descrição como Isidore Ducasse as criou, isso tem muito a ver com o século XIX, com o romantismo. O excesso de comparações, de imagens, tem muito a ver com esse gosto ligado ao romantismo.

O facto de ter vivido em Paris a dada altura da sua vida ligou-o mais ainda aos espaços onde estas personagens foram criadas e “viveram”?
Paris, antes da rua e do quotidiano, era já para mim uma Paris literária. As primeiras imagens e memórias de Paris são sempre literárias. Quando olho para as ruas e elas têm nomes de poetas que sobretudo lia, há ali toda uma história da literatura que se desenrola na minha memória. Em relação ao Isidore Ducasse, é evidente que estando em paris aproveitei o meu tempo para visitar alguns sítios, nomeadamente na zona dos grands boulevards. A Paris cosmopolita do final do século XIX onde o Ducasse viveu. Ruas que são também o centro da acção de algumas das histórias dos cantos. Fui procurar aquelas portas, casas e degraus que porventura o Ducasse tenha percorrido.

Chegou a fazer um prefácio para uma edição portuguesa, relativamente recente, do livro.
Fi-lo quando estava em Paris. Tinha sido um prefácio originalmente encomendado pela Fenda, mas nunca mais o livro saía... E passei o texto para a Quasi.
(continua amanhã)