Onze anos depois de Müller no Hotel Hessischer Hof os Mão Morta voltam a criar um espectáculo baseado em textos de terceiros. Projecto já antigo, concretizado finalmente na sequência de um desafio lançado pelo Theatro Circo (de Braga), a adaptação d'Os Cantos de Maldoror, texto de finais do século XIX assinado pelo francês Isidore Ducasse sob o pseudónimo do Conde de Lautréamont, ganha agora segunda vida, em disco. Há naturais afinidades entre esta adaptação e o trabalho que, em 1997, os Mão Morta desenvolveram a partir dos textos de Heineir Müller. Distante dos caminhos mais próximos do rock’n’roll mais habituais em muitas (não todas) gravações dos Mão Morta, aqui se revela novamente uma curiosidade textural (que ora nasce das electrónicas, ora das guitarras). Assim como uma forma de, sob um texto essencialmente declamado, nele encontrar pontos de partida para uma música que, sem perder características cenográficas, não deixa também de a si convocar, frequentemente, evidente protagonismo. Apesar de despido da expressão corpórea que o palco confere a um espectáculo mais próximo das linguagens do teatro que do formato tradicional do concerto, o disco respira uma intensidade dramática pungente. Não dispensa o palco (aliás, pede a visita ao espectáculo a quem o não ainda viu). Mas vive por si, garantindo a voz de Adolfo Luxúria Canibal e as narrativas que nos “canta” o foco das atenções para uma experiência intensa através da qual descobrimos personagens cativantes, misteriosas. Quase palpáveis, tal a precisão descritiva do texto original. Nota adicional para a expressão física de um CD duplo cujo “corpo” pede que seja folheado, manuseado. Ilustrações e o próprio texto, num formato de pequeno livro com alma artesanal aproximam-nos da música e de quem a fez. Uma sagaz alternativa num tempo em que se fala na desmaterialização anónima da música...
Mão Morta
“Maldoror”
Cobra
5 / 5
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Há três anos, o álbum Elephant Eyelash representava um significativo pólo de reinvenção de uma linguagem claramente nascida no hip hop. Elevado do estatuto de projecto de um homem só (Yoni Wolf, elemento também dos cLOUDDEAD, uma das âncoras centrais da família Anticon) ao patamar de banda, o colectivo Why? mostrava que, tal como acontecera em carreiras nascidas do rock’n’roll, a experiência dos híbridos era, também, um caminho criativamente estimulante para quem começara, no quarto, produzindo hip hop de baixa fidelidade, mas de grande personalidade. Alopecia, agora, confirma em pleno como certas as opções de Yoni Wolf e companhia. No mais coeso dos seus discos de sempre, o colectivo revela que as genéticas hip hop são hoje linguagem assimilada que serve a arte da cenografia, a sugestão de texturas, a utilização de técnicas de corte e colagem. E que na folk (entretanto descoberta e compreendida) e na estrutura da canção encontram hoje o destino do seu trabalho. Central ao disco é também a sombria visão do mundo e das gentes que as palavras retratam, num jogo que revela afinidades com registos de storytelling (certamente escutados na folk). Confessionais, pessoais e obsessivas, as imagens sugeridas acrescentam uma dimensão emocional de desencanto que domina um disco que se descobre melhor a cada nova audição.
Why?
“Alopecia”
Tomlab / Flur
4 / 5
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Juntamente com os Hercules & Love Affair e os Escort (destes últimos ainda não havendo um álbum editado, apenas uma mão cheia de magníficos máxis), os Glass Candy completam uma espécie de frente de trabalho que está a devolver as matrizes do disco ao presente pop. Oriundos de Portland, partilham editora e tempo de trabalho com os Chromatics (nos quais hoje milita uma das metedes desta dupla, o teclista Johnny Jewel). De comum com os Chromatics sente-se também aqui um gosto por cenografias tensas, sombrias, a eforia herdada das memórias do disco sendo aqui uma espécie de memória de fim de festa, de última canção antes do regresso a casa (de que o álbum dos Chromatics seria, depois, banda sonora). Mais centrado em pistas colhidas no passado, em concreto no italo disco e outras faces mais electrónicas do disco de finais de 70 que o álbum de Hercules & Love Affair, B/E/A/T/B/O/X é mais revisão que ostensiva reinvenção. Isto sem lhe retirar méritos na escrita de belíssimas canções nem sem deixar de reconhecer o aprumo plástico, do que aqui se propõe. Há um travo de nostalgia, não festiva, que parece contrapor-se ao que habitualmente sucede quando o disco é pista para novas paixões, na sua esmagadora maioria destinadas à pista de dança. B/E/A/T/B/O/X é mais desencanto que farra, mais fim de noite de copo na mão que passos acertados sob as luzes da pista. Melancolia depois das luzes. E é esse teatro de sentidos, esse filme sugerido que faz deste um álbum diferente. Com cereja sobre o bolo numa espantosa versão de Computer Love, dos Kraftwerk.
Glass Candy
"B/E/A/T/B/O/X"
Italians do it Better / Sabotage
4 / 5
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Naturais de Athens (na Georgia, EUA), os Elf Power conseguiram sobreviver a muitas das bandas de referência dos primeiros tempos da (mítica) editora Elephant 6. A sua música partilhou palcos, experiências e entusiasmos com elementos de bandas como os Olivia Tremor Control, Neutral Milk Hotel ou Of Montreal. Em 2004, em Walking With The Beggar Boys, mostravam uma vontade de transcender os caminhos lo fi outrora percorridos, demonstrando (saudável) ambição em procurar, numa nova etapa, novos horizontes. Quatro anos mais tarde (e três discos depois), encontramo-nos num álbum competente, mas algo aquém dos mais recentes esforços (ainda visionários) de velhos parceiros, como os Of Montreal ou Apples In Stereo. In A Cave mantém intacta a liderança criativa de Andrew Rieger, assim como firme a sua agenda temática. Porém só ocasionalmente mostra, como sucede nos fabulosos Paralyzed ou The Demon’s Daughter, sinais de um eclético sentido pop estudado nos melhores compêndios do psicadelismo que, explorado com um mais apetitoso cardápio de canções, teria gerado um disco bem mais interessante. In A Cave, segundo album que editam no catálogo da Rykodisc), está contudo longe de representar uma derrocada numa história que se inscreve numa das mais notáveis famílias indie rock norte-americanas. É um seguro disco de canções pop de arranjos elaborados a partir de sabores herdados de memórias de 60.
Elf Power
“In A Cave”
3 / 5
Rykodisc / Warner
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Podem ser nome com presença relativamente recente no cartaz dos interesses de quem acompanha a música com atenção aos fenómenos “alternativos”. A “culpa” da descoberta global dos Devotchka, na verdade, coube até a um dos mais aplaudidos filmes de há dois anos. Foi em Little Miss Sunshine, em cuja banda sonora as canções da banda tiveram um protagonismo tal que lhes valeu, inclusivamente, uma nomeação para um Grammy. O momento valeu a (re)descoberta do antes quase ignorado How It Ends, álbum que em tudo definia a linguagem de uma banda que, apesar de residente em Denver (no coração do Colorado), acolhia na sua música ecos da cultura cigana balcânica e de uma forma de repensar outras tradições folk europeias em contexto rock, muito ao jeito do que conhecemos na obra do bretão Yann Tiersen. Ou seja, partilhando interesses e formas com compatriotas como A Hawk and a Hacksaw ou Beirut. A Mad & Faithful Telling é, quatro anos depois desse álbum, o episódio seguinte (e o primeiro para uma editora com projecção mundial). Quem os escute pela primeira vez talvez reaja pela surpresa, pelo “exotismo” dos temperos... Mas, na verdade, o quarto álbum de Devotchka não é mais que magra dieta de mais do mesmo. Competente na interpretação. Capaz de fazer de Along The Way um candidato a um dos hinos indie do ano. Com perfeito epílogo em New World. Livre e entusiasmante quando cala a fanfarra. Coisa que, contudo, acontece em poucas faixas...
Devotchka
"A Mad & Faithful Telling"
Anti / Edel
2 / 5
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Também esta semana:
Foals, Guillemots, Beck (reedição), The Whip, Supergrass, American Music Club (ed. Nacional), The Gossip (remisturas), Panic At The Disco, Supergrass, Elbow (ed. Nacional), Billy Bragg, Joy Division (best of)
Brevemente:
31 de Março: REM, Rádio Macau, Faces (reedições), The Cloud Room (ed nacional), Frank Black, Kelley Polar
7 de Abril: Breeders, Rolling Stones, Balla, Clinic, Mexican Institute Of Sound, Triffids (reedições), James, Mobius Band, Long Blondes, Black Kids, Elvis Costello (reedição), Steve Reich, Roni Size, Was Not Was, Alabama 3
14 de Abril: B-52’s, Kooks, The La’s (reedição), Blood Red Shoes, Cinematic Orchestra (live), Forward Fussia!, Paul Haig
Abril: Portishead, Madonna, The Last Shadow Puppets, The Presets, M83, Air (reedição), UHF (reedição), Petrus Castrus (reedição), Quinteto Académico + 2 (reedição), Telectu (reedição), Quarteto 1111 (reedição), Duran Duran (reedições – três primeiros álbuns numa caixa), Camané, Mesa, OMD (live), NIN, Doors (live), Jamie Lidell, Mountain Goats
Maio: Spiritualized, Animal Collective (EP), Tokio Police Club, Moby.