sexta-feira, fevereiro 15, 2008

A propósito da montra de uma livraria

Sabemos que vivemos num país em que, graças ao triunfo da sinistra ideologia do Big Brother, a "intimidade" e o "escândalo" conquistaram o poder no mundo das linguagens. Ainda assim, não é fácil estarmos preparados para a obscenidade que, por vezes, o quotidiano assume e promove. Aconteceu-me hoje, ao dar de caras com a montra de uma livraria onde se expunham lado a lado — em muito intencional arranjo "temático" — uma série de livros sobre o caso McCann e o romance Vista pela Última Vez.../Gone Baby Gone, de Dennis Lehane, recentemente adaptado ao cinema por Ben Affleck.
Na origem deste grosseiro "paralelismo" estão as "coincidências" entre algumas peripécias do romance/filme (onde se narra o provável rapto de uma menina) e os factos relacionados com o desaparecimento de Madeleine McCann, na Praia da Luz. Aliás, o próprio Ben Affleck apoiou o adiamento da estreia do filme no Reino Unido (a cujas salas só irá chegar no próximo mês de Abril). Fê-lo, em todo o caso, não pelo seu trabalho — um brilhante exercício de realismo social —, mas para evitar favorecer a mediocridade especulativa dos tablóides ingleses.
Quanto mais não seja por uma questão de sanidade mental (e para não cedermos ao simplismo intelectual que produz montras como a que referi), vale a pena lembrar alguns dados muito básicos:
1 - o romance de Lehane (também autor de Mystic River, adaptado por Clint Eastwood) não tem qualquer tipo de relação simbólica ou meramente cronológica com o caso McCann, uma vez que a sua primeira edição data de 1998.
2 - a rodagem do filme iniciou-se em Maio de 2006, cerca de um ano antes do desparecimento de Madeleine McCann.
3 - a acção do livro e do filme passa-se num bairro de Boston (em vários aspectos lembrando os ambientes de Mystic River) com características urbanas e sociais que não têm a mais ténue relação com cenários ou referências da Praia da Luz, no Algarve.
Em resumo: favorecer qualquer tipo de especulação "conjunta" entre uma coisa e outra decorre de uma visão sem fundamento, gratuita e, de facto, mentirosa. É pena que o trabalho de um romancista tão interessante seja sujeito a este tipo de humilhação comercial.