sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Em conversa: Osvaldo Golijov (3)

Concluímos hoje a publicação da versão integral de uma entrevista com o compositor argentino Osvaldo Golijov, que serviu de base a um artigo publicado no DN.

Ayre, o ciclo de canções que assinalou em 2005 a sua estreia na Deutsche Grammophon, reflecte uma música com uma geografia, mas que cruza tempos.
A minha ideia foi, contudo, desde o início a de não procurar fazer daquele ciclo um exercício académico de história. Tem mais a ver com uma ideia de presente, e de nos ajudar a perceber quem somos. A voz de Dawn Upshaw depois ajuda, porque é incrível.

Já fez várias gravações com Dawn Upshaw. É uma musa sua?
Sem dúvida. Gosto muito dela. Gosto de trabalhar com vozes da música popular porque sabem mentir... Mas o problema com estas vozes é, habitualmente, a sua limitação naquilo que posso pedir delas. A Dawn Upshaw consegue ter o tom e o poder emocional da música popular, mas pode fazer o que quiser com a sua voz. Ou seja, posso escrever o que quer que entenda para a sua voz.

Quando compôs a sua ópera Ainadamar já pensava que seria ela a voz protagonista?
Sim, pensava. Não necessariamente como um costureiro...

Quando fez a sua ópera colaborou na encenação?
Queria que a música tivesse uma personalidade teatral logo desde o início. Mas não dei ideias de encenação específicas. A música tem a sua noção de teatro já em si... Mas fico sempre espantado com o que conseguem depois fazer num palco, a partir daquela música...

Foi uma aventura?
Sim. Até aí não sabia o que era fazer uma ópera! Para a próxima, para o melhor ou o pior, creio que terei mais noções concretas do que tenho de fazer.

Gosta de ópera contemporânea?
Sim, gosto... É um formato com o potencial espantoso. Vou escrever uma nova ópera para a Metropolitan Opera...

E porque procurou a brasileira Luciana Souza para Oceana?
Descobri-a na rádio. Tinha de compor uma canta, e a ideia que trabalhei levava Bach para a América. Por isso não queria uma voz habituada à música clássica. Ouvi a voz de Luciana e pareceu-me espantosa. Convenci-a a cantar...

E como se lembrou de usar um poema de Neruda para essa cantata?
Sou judeu. Bach escreveu uma série de cantatas sagradas incríveis.... Mas escrever uma canta judaica sobre a América seria estranho. Somos poucos na América latina... Escrever uma cantata cristã também seria pouco natural, simplesmente porque não sou cristão. Assim procurei um texto que tivesse uma noção de sagrado, mas sem o contexto religioso. Neruda é assombroso... É sagrado e secular ao mesmo tempo.

Regravou recentemente a sua La Pasión Según San Marcos, que a Deutsche Grammophon editará ainda este ano. Como foi regressar a uma obra que gravou originalmente em 2000?
É diferente. Passaram sete anos... Foi uma gravação de estúdio e não ao vivo... Creio que se atingiu uma emotividade mais profunda.

O que sente por estar hoje integrado num catálogo como o da Deutsche Grammophon, com todo o peso histórico que carrega?
Sinto-me pequeno!

Tem trabalhado para o cinema. Philip Glass disse, recentemente, que muitas pessoas ligadas aos espaços da música clássica vêm o trabalho no cinema com algum cepticismo...
Concordo... Mas o incrível é que tive a sorte de trabalhar com Coppola. E ele encorajou-me a não evitar a vontade de experimentar. Foi divertido. Ele foi muito aberto a todas as sugestões. É muito bom poder trabalhar com um realizador visionário como ele. Senti-me como se fosse outra vez um aluno de escola.

Cederia música sua para instalações ou mesmo filmes experimentais?
Sim, sem dúvida. Seria espantoso.

Fez arranjos para música de Carlos Paredes [para um disco do Kronos Quartet]. Como foi?
Adorei! Foi espantoso trabalhar a sua música! Por vezes há mais emoção nessas pequenas peças que numa ópera. Aprendi muito com a música dele.

O que admirou mais em Paredes?
A emoção... E há um sentido estranho de virtuosismo nele. Não é aquele virtuosismo tradicional. É táctil... Como Neruda na poesia. Cheira-se, sente-se... Não só na escrita como na interpretação.

Conhece outros artistas portugueses?
Admiro muito a obra de Amália Rodrigues, claro... Conheço também Dulce Pontes. E não muito mais. Confesso...