Há que o considere o primeiro compositor do século XXI. O que quer isto dizer?
Não faço a mínima ideia... Talvez seja uma ideia que tenha mais a ver com um conceito de remissão que até de evolução. Talvez eu esteja mais próximo do conceito do artesão musical da Idade Média que do compositor romântico e do paradigma do génio... Tem a ver também com ser-se conhecido pela obra, e não pelo nome. Como nas grandes catedrais medievais, em que uma pessoa fez o dragão, outra esculpiu. Se eu for o que fez o dragão ou o anjo na catedral, fico bem. Por outras, palavras, sinto que, daqui a 100 anos, o que vai interessar não será o testamento deixado por um gigante, mas antes uma ideia do que era o som do nosso tempo.
Não há lugar para o paradigma do génio no mundo actual?
Acredito que haverá sempre espaço para um Leonardo da Vinci, um Einstein, um Beethoven. Mas, se não se é um Beethoven, é preferível agir como um grande realizador de cinema, como Fellini, e sentir o que se passa à nossa volta, criando trabalhos que são quase como um organismo. É claro que somos nós quem dirige, quem molda, quem esculpe. Mas não vivemos fechados num quarto, surdos ao mundo lá fora. Isso é o que estou a fazer. E talvez esta ideia explique esse conceito.
Sente-se um homem do nosso tempo? Ou seja, um compositor que traduz o que é viver o nosso tempo...
Sim, nesse sentido concordo com a ideia. Pessoalmente, o que faço não se aproxima em nada a um Beethoven. Mas o meu trabalho tem a verdade do nosso tempo. Naturalmente, se um novo Beethoven surgir, serei o primeiro a reconhecer a honra de viver no seu tempo. O que se fala hoje é do confronto entre o modelo do génio solitário e do artista que vive a sociedade do seu tempo.
Esse espaço de solidão do génio, como sugere, seria possível nesta idade da comunicação global?
É por isso que me parece pouco possível... E é também por isso que os grandes avanços a que temos assistido têm mais a ver com trabalhos de colaboração, de comunicação. Há mais redes de comunicação que isolamento. É claro que haverá quem tente fazer o contrário... Mas veja-se o cinema. Não se faz sozinho. Precisamos de actores, câmaras, tantas coisas...
E a música?
Está a acontecer tanto ao nível dos diversos grupos humanos... Nos tempos de Beethoven, ou mais ainda, Mozart, era possível representar o espectro integral das emoções humanas. Hoje, dizer que um compositor de música erudita pode fazer isso é, no mínimo, presunção. Mesmo que tenha um conhecimento sobre o tango, o flamenco, o jazz, mesmo que consiga grandes feitos individuais (como o fizeram um Duke Ellington ou um Miles Davis), o que realmente interessa é o que a humanidade tem para dizer. Isto obriga a uma certa humildade. A acreditar nessa humildade...
E como podemos nós explicar a alguém qual é esse som da humanidade, nos dias em que vivemos?
Essa é uma magnífica questão! Que música poderíamos nós mostrar a visitantes de um outro planeta? A questão é mesmo tremenda... Diria que a possibilidade de cada um poder criar é talvez o que caracteriza a música do presente. Há cem anos havia um piano em cada grande casa. Há 30 anos as pessoas que gostavam de música já quase só a consumiam. Agora, com o computador, tudo mudou novamente. Vejo miúdos a tocar em bandas na escola, a fazer a sua própria música. Creio que, nesse sentido, a música vive um novo tempo de liberdade e cada um pode fazer música. Isso é o que de mais belo há na música de hoje. Houve esse tempo em que a maioria do mundo era ouvinte... É claro que sempre houve muita gente a cantar. Em casa, no campo, em festas, em funerais... Mas durante muito tempo poucos eram os profissionais da música. E hoje qualquer um pode fazer música...
(continua)