quinta-feira, dezembro 06, 2007

Em conversa: Jean Michel Jarre (3)

Qual é o papel na tecnologia na história musical de um artista?
É a tecnologia quem cria a possibilidade de novos géneros e não o contrário. É o instrumento quem gera o estilo. Foi depois de inventada a imprensa que se criou uma nova escrita. O romance é disso consequência... Foi depois de descoberto um certo pigmento que Miguel Ângelo pode pintar algo diferente... É pelo facto de ter aparecido o computador que existe hoje uma nova geração de criadores que se expressam pelo Photoshop, pelo Pro-tools. Foi por causa dos instrumentos analógicos que nasceu a música electrónica. Ao regressar, agora, a Oxygene, dei conta que esses instrumentos que então usei foram únicos. Únicos como o foram os violinos Stradivarius, na música clássica. Ou uma Fender Stratocaster para o rock. O sonho de um violinista, hoje, é tocar com um Stradivarius. Apesar de toda a tecnologia que entretanto apareceu. É como, na história de vida de cada um de nós, o acumular de um savoir faire, um talento, que é insubstituível. Os instrumentos analógicos de há algumas décadas permitiram a criação da música electrónica. Hoje as electrónicas actuais geram outras coisas. Mas as fundações da música electrónica estão naqueles instrumentos. E muitas coisas mudaram por causa do advento do digital, nos anos 80. Esqueceram-se então esses velhos instrumentos. Esqueceu-se o seu calor, riqueza, sensualidade... Os transístores e as lâmpadas...

Mudou a nossa noção de futuro?
Nesses dias havia uma visão poética do futuro. O milénio estava à nossa frente. Hoje está já atrás... E ou temos uma visão retro-futurista do futuro, ou uma outra, mais sombria... As visões actuais do futuro passam por um planeta que não está nada bem... No passado, o futuro passava pela conquista do espaço, era uma coisa mais emocional. Falava-se da invenção dos helicópteros e da possível ida do homem à Lua. Pareciam coisas irracionais... Hoje vivemos no domínio do racional. Os automóveis são todos parecidos, as tecnologias são semelhantes. No passado havia uma loucura que permitia a criação de instrumentos bizarros como o mellotron. Que dava aquele som trémulo que lembrava a velha música dos primeiros dias do cinema sonoro. Essa poesia pode ser recriada, é certo... Há plug-ins que podemos juntar aos nossos computadores. Mas é como se usássemos apenas as fachadas de edifícios. A música electrónica actual é, por isso, órfã das suas raízes. Imitamos a fachada dos instrumentos. São fantasmas de coisas que já não existem. Por isso uma das coisas que quis fazer ao regressar a Oxygene foi poder tocá-lo ao vivo. Gravei esta música, mas nunca a toquei na totalidade. Gravei-a em oito pistas, pelo que preciso de mais três músicos. Tenho vários instrumentos em cena, alguns deles são instrumentos que ninguém conhece. E chamo-lhe Oxygene Live In Your Living Room. As pessoas podem ver, de perto, esta música a ser tocada. Um pouco como na culinária. Totalmente ao vivo... Por muitas razões, muitos concertos hoje usam elementos em play back. Aqui tocamos tudo cem por cento ao vivo. A música está mais próxima, portanto, da sua fundação.

Usa muito a culinária como metáfora. Oxygene, curiosamente, nasceu num estúdio caseiro montado numa cozinha... A demanda de um artista tem algo de procura pelo gourmet?
Concordo plenamente. Uma carreira artística procura o gosto supremo, a busca do prato último... E nesse ponto de vista, e como tenho raízes em Lyon, uso estas relações com a cozinha para explicar esta atitude. Penso que o músico electrónico tem muito de cozinheiro. Os DJs estão frente aos gira-discos como o cozinheiro frente ao forno. Um passa discos, ao outro passam os pratos... Há analogias. E acredito na busca do prato perfeito. Fellini dizia, ao fim da sua vida, que afinal, tinha feito sempre o mesmo filme. Como o marceneiro, que fez sempre mesas. Até que um dia conseguiu a mesa perfeita. É uma definição que serve a todas as artes. A procura do momento perfeito...

E como se relaciona com a moda?
Nunca estive na moda. Quando o Oxygene saíu, o que estava na moda era o Saturday Night Fever e os Sex Pistols... E quando mais tarde os media definem a música electrónica como uma música de dança, senti-me novamente de fora...

Tem já o seu disco gourmet?
Ainda não o fiz, caso contrário ter-me-ia retirado. Até hoje fiz uns esboços. Sentindo que, em alguns casos, passei perto do que queria atingir. Em Oxygene, a face A do vinil original, é das ideias mais próximas dessa demanda, se bem que ainda num estado embrionário. Tem aquela coisa que é difícil de registar, que é a inocência. Não é algo que vem do acaso. A inocência é uma mistura de inconsciência, de ambição e vontade. E isso é difícil de repetir. A vida evolui. O trabalho, os filhos... Nada volta a ser igual.

Um disco como Music For Supermarkets pode não ter sido o momento gourmet, mas foi tratado como uma obra de arte. Dele existe apenas uma cópia...
Foi mais um gesto de provocação, de desafio. Nessa época o CD estava a chegar e reagi de forma muito negativa ao novo formato.

É o seu disco punk?
Talvez, mas sem a ideia de “no future”... Era mais uma chamada de atenção à indústria da música. Tinham encontrado a sua galinha dos ovos de ouro. Não iam matar a galinha, mas a relação das pessoas com o suporte musical e, no fim, com a música. Acho que não me enganei...

Fala da pirataria... Pensa que nasce de atitudes da própria indústria?
Para mim iam vender discos como quem vende iogurtes. Iam meter a música nos supermercados. Vender uma coisa que, afinal, não parecia ter valor. Que se guardava num plástico... Isto era o CD... Ao passo que o vinil era como o livro... Depois havia razões técnicas para não gostar do CD. Ao nível da qualidade o som do CD é inferior ao do vinil. No CD o som é decomposto em fatias e muito acaba perdido, Não há continuidade... Na altura perguntava se preferiam ver uma mulher maquilhada ou cortada às fatias... A indústria optou pela mulher cortada às fatias. As pessoas estavam convencidas que o CD era a liberdade, a libertação. Mas perderam a verdade física da música. Deixaram se ser tocados... Hoje a música diz-se que não tem valor. É gratuita, está na Internet. Ninguém a quer comprar. Tudo vem desse momento. Isto era o que eu queria dizer com Music For Supermarkets. Quem quisesse podia-me piratear uma vez, porque o disco passou uma vez na rádio. Eu sabia que isto era o que se ia passar no futuro. Estávamos em 1983 e não me enganei.
(continua)