Texto publicado na revista NS do Diário de Notícias (17 Nov.) >>>
O reconhecimento da obra do cineasta polaco Krzystzof Kieslowski passa por dois momentos fundamentais: em 1989-90, na sua Polónia natal, dirigiu a série Decálogo, uma reflexão perturbante (inspirada no texto dos Dez Mandamentos) sobre as relações entre os seres humanos e o transcendente, e também um marco na história moderna da televisão; depois, em 1993-94, já com produção francesa, assinou a célebre trilogia das cores (Azul, Branco, Vermelho), reflexão multifacetada sobre os enigmáticos cruzamentos da vida material e do reino do espiritual (Kieslowski viria a falecer em 1996, com apenas 54 anos de idade).
Entre uma coisa e outra situa-se este filme, a todos os títulos admirável, que é A Dupla Vida de Véronique. Lançado em 1991, corresponde, aliás, a uma espécie de ritual de passagem entre a Polónia e a França, quanto mais não seja porque se trata de uma coprodução entre os dois países. Mais do que isso, esta é uma história literalmente dividida entre dois países, duas personagens e, por assim dizer, duas formas de assombramento.
Para a actriz francesa Irène Jacob, este foi um momento vital de afirmação do seu imenso talento (vimo-la recentemente em A Vida Interior de Martin Frost, de Paul Auster). Então com 25 anos, ela interpreta aqui duas personagens: a polaca Veronika, estudante de música, e a francesa Véronique, que ambiciona ser cantora. Por um lado, desconhecem-se em absoluto; por outro lado, as convulsões da vida de uma parecem ecoar na existência da outra, como se não fossem mais do que duas identidades ligadas por um segredo impossível de revelar... No fundo, Kieslowski filma esse sentimento, ao mesmo tempo sensual e inquietante, de não estarmos completamente no lugar em que estamos, de nos completarmos apenas noutra dimensão, através de algo ou alguém que desconhecemos.
A edição em DVD distingue-se por uma notável qualidade técnica, nomeadamente na transcrição das imagens assinadas por Slawomir Idziak (entretanto envolvido com a grande produção americana, tendo sido director de fotografia, por exemplo, de Black Hawk Down/Cercados, de Ridley Scott). Além do mais, estamos perante um caso exemplar em que os extras não possuem nada de “decorativo”, antes permitindo uma ligação efectiva com o trabalho do filme e as suas determinações temáticas, artísticas, racionais e afectivas. Temos, assim, um magnífico making of e também uma pequena, mas reveladora, entrevista com Irène Jacob (registada em 2005). São materiais que nos permitem entrar neste universo tão puro e, ao mesmo tempo, tão misterioso, onde tudo é carnal e, ao mesmo tempo, tudo nos sugere uma dimensão sagrada.
O reconhecimento da obra do cineasta polaco Krzystzof Kieslowski passa por dois momentos fundamentais: em 1989-90, na sua Polónia natal, dirigiu a série Decálogo, uma reflexão perturbante (inspirada no texto dos Dez Mandamentos) sobre as relações entre os seres humanos e o transcendente, e também um marco na história moderna da televisão; depois, em 1993-94, já com produção francesa, assinou a célebre trilogia das cores (Azul, Branco, Vermelho), reflexão multifacetada sobre os enigmáticos cruzamentos da vida material e do reino do espiritual (Kieslowski viria a falecer em 1996, com apenas 54 anos de idade).
Entre uma coisa e outra situa-se este filme, a todos os títulos admirável, que é A Dupla Vida de Véronique. Lançado em 1991, corresponde, aliás, a uma espécie de ritual de passagem entre a Polónia e a França, quanto mais não seja porque se trata de uma coprodução entre os dois países. Mais do que isso, esta é uma história literalmente dividida entre dois países, duas personagens e, por assim dizer, duas formas de assombramento.
Para a actriz francesa Irène Jacob, este foi um momento vital de afirmação do seu imenso talento (vimo-la recentemente em A Vida Interior de Martin Frost, de Paul Auster). Então com 25 anos, ela interpreta aqui duas personagens: a polaca Veronika, estudante de música, e a francesa Véronique, que ambiciona ser cantora. Por um lado, desconhecem-se em absoluto; por outro lado, as convulsões da vida de uma parecem ecoar na existência da outra, como se não fossem mais do que duas identidades ligadas por um segredo impossível de revelar... No fundo, Kieslowski filma esse sentimento, ao mesmo tempo sensual e inquietante, de não estarmos completamente no lugar em que estamos, de nos completarmos apenas noutra dimensão, através de algo ou alguém que desconhecemos.
A edição em DVD distingue-se por uma notável qualidade técnica, nomeadamente na transcrição das imagens assinadas por Slawomir Idziak (entretanto envolvido com a grande produção americana, tendo sido director de fotografia, por exemplo, de Black Hawk Down/Cercados, de Ridley Scott). Além do mais, estamos perante um caso exemplar em que os extras não possuem nada de “decorativo”, antes permitindo uma ligação efectiva com o trabalho do filme e as suas determinações temáticas, artísticas, racionais e afectivas. Temos, assim, um magnífico making of e também uma pequena, mas reveladora, entrevista com Irène Jacob (registada em 2005). São materiais que nos permitem entrar neste universo tão puro e, ao mesmo tempo, tão misterioso, onde tudo é carnal e, ao mesmo tempo, tudo nos sugere uma dimensão sagrada.