quarta-feira, outubro 03, 2007

Em conversa: Carlos Saura (2)

A um dia da estreia em Portugal do filme Fados (que teve anteestreia na semana passada no Cinema São Jorge, em Lisboa, e já passou pelos festivais de Toronto e San Sebastian, continuamos a apresentar a integral de uma entrevista com o realizador espanhol Carlos Saura, originalmente publicada no DN. A imagem que ilustra o post mostra o realizador junto a Chico Buarque.

Como definiu as escolhas para o elenco do filme?
Quem vir o filme vai verificar que falta muita gente. Mas não cabia ali o mundo inteiro. Tínhamos de considerar os mais representativos. Tanto entre os clássicos como nas gerações mais novas.

Carlos do Carmo sugeriu que apenas Argentina Santos não devia ficar de fora...
Sim ... E eu não conhecia a Argentina Santos. Ouvi-a pela primeira vez em Lisboa e num fado que até nem gostei muito a princípio... E agora acho que o fado que ela canta no filme é dos que me arrepia mais.

E como descobriu os músicos mais jovens que tem no filme? Há hip hop em Fados! Houve muito trabalho de colaboração neste filme. E essa foi uma colaboração concreta do Ivan. Ele foi uma força fundamental, com todo o seu entusiasmo. Estávamos de acordo nesta ideia de romper as normas...

Foi decisão sua ter figuras de primeiro plano internacional como Caetano Veloso,Chico Buarque ou Lila Downs no filme?
Tudo se fez em acordo. Com o Ivan, com o Carlos do Carmo... A decisão final coube-me a mim, mas muitas das sugestões vieram do Ivan. Agora uma coisa é certa: em Fados não está nada de que eu não goste!

O filme homenageia Marceneiro, Amália e Lucília do Carmo...
Eram fundamentais. No caso de Marceneiro é interessante a ligação que se faz com os rapazes do hip hop.

Flamenco e Tango eram filmes sobre músicas que se dançam. O fado nem tanto assim. Mas dança-se em Fados. Como se dança o fado?
Essa é uma invenção minha. O fado é belo, elegante. Mas escutar apenas oito fados de seguida poderia ser perigoso, cansativo. É uma música melancólica... Pensei sobre o assunto. Comecei por procurar um fado que se pudesse dançar. Há estudiosos que defendem uma origem do fado no Brasil. E pareceu-me que não seria um contra-senso começar, por aí, a estabelecer outro tipo de relações. E o próprio filme acabou assim por ter um outro ritmo.

O filme não ignora o 25 de Abril de 1974. Sente que há uma história do antes e do depois na relação dos portugueses com o fado?
A revolução tinha de estar no filme. Queria, como no Tango, dar a entender que houve um tempo de repressão. E queria, também, sugerir depois um tempo festivo. Foi uma revolução invulgar. Gosto da forma como o Fado Tropical do Chico Buarque sublinha essas memórias entre Portugal e o Brasil, com um sentido de fraternidade.

Depois de ter feito o filme, o que é, hoje, o fado para si?
É um pouco como o tango ou o flamenco... São músicas que nascem no século XIX. E que estão ligadas a uma vivência de Portos, como Montevideo ou Buenos Aires. Ou Cádiz... E há na sua génese uma ligação a prostíbulos, o que é curioso. Daí nasceu uma música bela. É uma música especial, com a sua forma de cantar particular, uma linguagem melancólica. Parece-me que, de certa forma, sem exagerar, pode definir uma maneira de ser portuguesa.

É “a” expressão da alma portuguesa?
De alguma maneira, sim. Mas não generalizava, porque isso poderia ser perigoso. Não diria que ser fado é ser português. Mas que me sinto português no fado, é verdade. E gosto de pensar esta como uma música do futuro. E quando penso nisso penso na Mariza. Ela é das pessoas que mais vai fazer avançar o fado. O Camané talvez esteja mais próximo da tradição. A Mariza tem uma coisa interior especial... Aquela música com a orquestra... É mais caliente... (risos).

Foi por isso que a fez cantar um dueto com uma voz do flamenco? Abre portas a outras relações possíveis?
Sinto mais essas possíveis portas até com a Argentina Santos. Há uns momentos no fado que ela canta que quase parece ser um flamenco.
(conclui amanhã)