Texto publicado no Diário de Notícias (14 Out.), com o título 'A banalização histórica do cinema português' >>> Afinal, como é que se vivia em Portugal antes do dia 25 de Abril de 1974? A avaliar por algumas ficções recentes, a resposta parece oscilar entre duas hipóteses. A primeira, pitoresca, está na série Conta-me como Foi (RTP1): a memória confunde-se com um catálogo revivalista, já não há seres vivos, mas apenas “símbolos”, “bons” e “maus”, “conservadores” e “reformistas”. A segunda variante tem a sua exuberante expressão no filme Julgamento, de Leonel Vieira, também produzido por uma televisão (TVI) e concebido para posterior apresentação em mini-série. Aqui, o pitoresco transfigura-se em maniqueísmo “trágico”: Portugal foi uma ditadura de que apenas sobram as imagens da PIDE, ou melhor, algumas cenas de tortura encenadas com o esquematismo grosseiro de um policial americano de quinta ordem.
Não posso nem quero esconder que Julgamento me parece ser um sintoma da generalização das mais vulgares matrizes televisivas e da sua metódica destruição do imaginário do cinema português. Mas que seja também claro que, mais do que nunca, recuso a demagogia que gosta de proclamar que o crítico que diz “mal” de um filme português está a sugerir que os espectadores o “evitem”. Creio que cada espectador é suficientemente adulto para decidir se quer ou não ver um determinado filme (português ou não). Além do mais, um crítico de cinema não é um polícia sinaleiro, mas alguém que, mal ou bem, se atreve a pensar... Desta vez, porém, faço questão em abrir uma excepção: o simplismo dramático, formal e psicológico de Julgamento justifica que o vejamos todos, em massa, para que realmente possamos discutir o que algum cinema português, assumidamente televisivo, está a fazer à nossa história.
De facto, parece que o Estado Novo foi um tempo em que não havia mais nada a não ser agentes da PIDE mal encarados e alguns pobres cidadãos com ar enfezado, ansiosos por combater ao lado de Che Guevara... Para esta banalização do passado, muito contribuiu o esquematismo ideológico de muitas esquerdas (obviamente sancionado pelo silêncio das direitas) que, à força de muitas palavras de ordem e pouca reflexão, conseguiram anular o nobre labor da memória, a ponto de condensar tudo em dois estereótipos: o “resistente” de olhar juvenil e o “pide” de pele sempre coberta de suor.
Como é possível que tenhamos chegado a esta miséria figurativa? Que pensamento histórico se quer generalizar? Que responsabilidade narrativa se está a assumir?
Porque, além do mais, é mesmo verdade que vivemos sob uma ditadura mesquinha e insidiosa. É mesmo verdade que houve repressão e resistência. E é também verdade que no meio disso tudo, ou melhor, coexistindo com tudo isso, se viveram milhões de vidas recheadas de coisas infinitamente ricas e deslumbrantemente complexas. Não será que o cinema, como qualquer forma de ficção, possui a responsabilidade básica de não desmerecer dessa complexidade histórica que lhe serve de património? Só posso responder por mim: fiz 20 anos em 1974 e é com mágoa que assisto à banalização do tempo em que fui criança e adolescente.
Não posso nem quero esconder que Julgamento me parece ser um sintoma da generalização das mais vulgares matrizes televisivas e da sua metódica destruição do imaginário do cinema português. Mas que seja também claro que, mais do que nunca, recuso a demagogia que gosta de proclamar que o crítico que diz “mal” de um filme português está a sugerir que os espectadores o “evitem”. Creio que cada espectador é suficientemente adulto para decidir se quer ou não ver um determinado filme (português ou não). Além do mais, um crítico de cinema não é um polícia sinaleiro, mas alguém que, mal ou bem, se atreve a pensar... Desta vez, porém, faço questão em abrir uma excepção: o simplismo dramático, formal e psicológico de Julgamento justifica que o vejamos todos, em massa, para que realmente possamos discutir o que algum cinema português, assumidamente televisivo, está a fazer à nossa história.
De facto, parece que o Estado Novo foi um tempo em que não havia mais nada a não ser agentes da PIDE mal encarados e alguns pobres cidadãos com ar enfezado, ansiosos por combater ao lado de Che Guevara... Para esta banalização do passado, muito contribuiu o esquematismo ideológico de muitas esquerdas (obviamente sancionado pelo silêncio das direitas) que, à força de muitas palavras de ordem e pouca reflexão, conseguiram anular o nobre labor da memória, a ponto de condensar tudo em dois estereótipos: o “resistente” de olhar juvenil e o “pide” de pele sempre coberta de suor.
Como é possível que tenhamos chegado a esta miséria figurativa? Que pensamento histórico se quer generalizar? Que responsabilidade narrativa se está a assumir?
Porque, além do mais, é mesmo verdade que vivemos sob uma ditadura mesquinha e insidiosa. É mesmo verdade que houve repressão e resistência. E é também verdade que no meio disso tudo, ou melhor, coexistindo com tudo isso, se viveram milhões de vidas recheadas de coisas infinitamente ricas e deslumbrantemente complexas. Não será que o cinema, como qualquer forma de ficção, possui a responsabilidade básica de não desmerecer dessa complexidade histórica que lhe serve de património? Só posso responder por mim: fiz 20 anos em 1974 e é com mágoa que assisto à banalização do tempo em que fui criança e adolescente.
Propaganda do Estado Novo: como (re)pensar a memória?