Macbeth (1948), de Orson Welles
Confesso a minha pertença a um clube infinitamente minoritário: ao contrário de muitos concidadãos, não passo a vida a especular se o pai e a mãe de Madeleine McCann são "inocentes" ou "culpados", não vivo para esse jogo obsceno de telenovela em que quase todos se condenam a encarar a existência (a sua e a dos outros) como se fosse um imenso bordel de jogos de investigação policial. Conheço os factos e aguardo para saber — além do mais, a situação parece-me sufi-cientemente perturbante para não lhe acrescentar o gratuito da especulação e do moralismo. Inocentes ou culpados, os McCann devem ser respeitados na condição de presunção de inocência que a lei lhes garante.
Em todo o caso, não consigo ficar indiferente a uma nova tendência, para mais expressa com a exuberância de quem, subitamente, se afirma confrontado com um mistério que a história da humanidade escondeu de tudo e de todos. Assim, passou a ser chic proclamar que, "se os McCann forem culpados", então a nossa crença na bondade humana ficará muito abalada...
Como? Importam-se de repetir? De repente, parece haver pessoas que julgam que os milénios de histórias das famílias são um paraíso de paz e harmonia, porventura com anjos castos a dormitar debaixo das camas e no topo dos armários. De repente, a herança da tragédia grega desvaneceu-se... E Shakespeare? Connaît pas... Parece-me até que os que celebraram a morte do “poeta” Bergman, nunca se deram ao trabalho de olhar para um dos seus filmes.
Não se trata de demonizar a instituição família. E também não é um problema de enciclopedismo. Longe disso (já basta os “enciclopedis-
tas” internéticos que por aí andam). É um problema, isso sim, de aculturação, no sentido mais fundo e dramático que a palavra pode envolver: a cultura foi esvaziada do seu peso ancestral, da sua função de cimento colectivo e o mundo passou a ser pensado (?) como algo que começou neste preciso instante. “Os McCann podem ser culpados? Que horror! Ao longo de milénios, não é a família um espaço de radiosa harmonia e palpitante redenção?”
Como viver no meio deste infantilismo? Porque, de facto, é disso que se trata: uma suposta purificação do nosso olhar — e da nossa vontade de ver e saber — que nos fragiliza face à complexidade do mundo e às contradições da natureza humana. E tudo isso, insisto, independentemente de os McCann serem culpados ou inocentes. Como viver no meio desta recusa de ser adulto?
Confesso a minha pertença a um clube infinitamente minoritário: ao contrário de muitos concidadãos, não passo a vida a especular se o pai e a mãe de Madeleine McCann são "inocentes" ou "culpados", não vivo para esse jogo obsceno de telenovela em que quase todos se condenam a encarar a existência (a sua e a dos outros) como se fosse um imenso bordel de jogos de investigação policial. Conheço os factos e aguardo para saber — além do mais, a situação parece-me sufi-cientemente perturbante para não lhe acrescentar o gratuito da especulação e do moralismo. Inocentes ou culpados, os McCann devem ser respeitados na condição de presunção de inocência que a lei lhes garante.
Em todo o caso, não consigo ficar indiferente a uma nova tendência, para mais expressa com a exuberância de quem, subitamente, se afirma confrontado com um mistério que a história da humanidade escondeu de tudo e de todos. Assim, passou a ser chic proclamar que, "se os McCann forem culpados", então a nossa crença na bondade humana ficará muito abalada...
Como? Importam-se de repetir? De repente, parece haver pessoas que julgam que os milénios de histórias das famílias são um paraíso de paz e harmonia, porventura com anjos castos a dormitar debaixo das camas e no topo dos armários. De repente, a herança da tragédia grega desvaneceu-se... E Shakespeare? Connaît pas... Parece-me até que os que celebraram a morte do “poeta” Bergman, nunca se deram ao trabalho de olhar para um dos seus filmes.
Não se trata de demonizar a instituição família. E também não é um problema de enciclopedismo. Longe disso (já basta os “enciclopedis-
tas” internéticos que por aí andam). É um problema, isso sim, de aculturação, no sentido mais fundo e dramático que a palavra pode envolver: a cultura foi esvaziada do seu peso ancestral, da sua função de cimento colectivo e o mundo passou a ser pensado (?) como algo que começou neste preciso instante. “Os McCann podem ser culpados? Que horror! Ao longo de milénios, não é a família um espaço de radiosa harmonia e palpitante redenção?”
Como viver no meio deste infantilismo? Porque, de facto, é disso que se trata: uma suposta purificação do nosso olhar — e da nossa vontade de ver e saber — que nos fragiliza face à complexidade do mundo e às contradições da natureza humana. E tudo isso, insisto, independentemente de os McCann serem culpados ou inocentes. Como viver no meio desta recusa de ser adulto?
A Child Crying (1967), foto de Diane Arbus