Este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 de Agosto), com o título 'Fotografar a morte e celebrar a vida' >>> Quase sempre, quando olhamos para um conjunto de trabalhos de um fotógrafo, temos tendência a procurar um elo que ligue as imagens, no limite um “tema” que lhes confira unidade e coerência. É isso que, historicamente, nos faz dizer, por exemplo, que Henri Cartier-Bresson foi um fotógrafo do “instante” ou Helmut Newton um especialista do “erotismo”.
Em boa verdade, e para além da acuidade histórica de tais rótulos, creio que a sua aplicação acaba sempre por ser algo redutora. Porquê? Porque o fotógrafo, quando é genuíno e livre, quer dizer, quando não se preocupa em confirmar (ou não) a sua “imagem de marca”, supera qualquer classificação do género: a singularidade do seu olhar nasce também da extrema disponibilidade para a pluralidade do real e respectivos enigmas. É possível sentir essa disponibilidade percorrendo as quarenta e quatro fotografias de Pedro Letria, reunidas no livro Mármore (Assírio & Alvim, Maio 2007).
Dizer que se trata de uma “antologia” de imagens é, por certo, uma possibilidade. Pedro Letria recolhe trabalhos realizados ao longo de cerca de 15 anos, organizando-os de acordo com elos temáticos mais ou menos implícitos, materiais ou simbólicos. Por vezes, há uma crueza a que não falta um poético desencanto: por exemplo, as fotografias do Instituto de Medicina Legal, lidando directamente com a evidência dos cadáveres, ligam-se com outras figuras de uma frieza brutal, isto é, as imagens do 1º Salão Erótico de Lisboa. Outras vezes, as passagens são meramente “descritivas”, tão intensas quanto discretas: um piquenique de “populares”, em Vila Real de Santo António, liga-se com um espantoso retrato de Álvaro Cunhal, transparente e indecifrável, por assim dizer liberto de qualquer cliché político.
Pedro Letria possui a arte serena do fotojornalista: gosta de deambular pelos cenários mais contrastados (há imagens da Índia, Bósnia, Palestina, etc.), sempre desperto para uma verdade visceral e, realmente, local que resiste a qualquer facilidade pitoresca. Em todo o caso, também esta classificação, “fotojornalismo”, não basta para descrever a acutilância e, por vezes, a fulgurante beleza do seu trabalho. Dir-se-ia que há nele uma vontade conceptual que nos pede que nunca menosprezemos o factor humano (mesmo que uma imagem possa dar a ver apenas um burro numa deslumbrante paisagem de São Jorge, nos Açores). Olhamos e, no limite, somos confrontados com a energia mais radical que uma fotografia pode conter: a de não abdicar de celebrar a vida que nela se exprime ou recorda.
Daí o efeito paradoxal das três imagens de abertura. Dão-nos a ver outros tantos cães, envelhecidos, galgos ex-corredores, que vivem num “reformatório”, em Hersham (Inglaterra). Condenados a uma existência sem donos, são seres cuja verdade se confunde com a pura espera da morte. Que a fotografia eternize a sua espera, eis o que resume a utopia mais louca que aqui se encena: face à morte, somos todos aristocratas.
Em boa verdade, e para além da acuidade histórica de tais rótulos, creio que a sua aplicação acaba sempre por ser algo redutora. Porquê? Porque o fotógrafo, quando é genuíno e livre, quer dizer, quando não se preocupa em confirmar (ou não) a sua “imagem de marca”, supera qualquer classificação do género: a singularidade do seu olhar nasce também da extrema disponibilidade para a pluralidade do real e respectivos enigmas. É possível sentir essa disponibilidade percorrendo as quarenta e quatro fotografias de Pedro Letria, reunidas no livro Mármore (Assírio & Alvim, Maio 2007).
Dizer que se trata de uma “antologia” de imagens é, por certo, uma possibilidade. Pedro Letria recolhe trabalhos realizados ao longo de cerca de 15 anos, organizando-os de acordo com elos temáticos mais ou menos implícitos, materiais ou simbólicos. Por vezes, há uma crueza a que não falta um poético desencanto: por exemplo, as fotografias do Instituto de Medicina Legal, lidando directamente com a evidência dos cadáveres, ligam-se com outras figuras de uma frieza brutal, isto é, as imagens do 1º Salão Erótico de Lisboa. Outras vezes, as passagens são meramente “descritivas”, tão intensas quanto discretas: um piquenique de “populares”, em Vila Real de Santo António, liga-se com um espantoso retrato de Álvaro Cunhal, transparente e indecifrável, por assim dizer liberto de qualquer cliché político.
Pedro Letria possui a arte serena do fotojornalista: gosta de deambular pelos cenários mais contrastados (há imagens da Índia, Bósnia, Palestina, etc.), sempre desperto para uma verdade visceral e, realmente, local que resiste a qualquer facilidade pitoresca. Em todo o caso, também esta classificação, “fotojornalismo”, não basta para descrever a acutilância e, por vezes, a fulgurante beleza do seu trabalho. Dir-se-ia que há nele uma vontade conceptual que nos pede que nunca menosprezemos o factor humano (mesmo que uma imagem possa dar a ver apenas um burro numa deslumbrante paisagem de São Jorge, nos Açores). Olhamos e, no limite, somos confrontados com a energia mais radical que uma fotografia pode conter: a de não abdicar de celebrar a vida que nela se exprime ou recorda.
Daí o efeito paradoxal das três imagens de abertura. Dão-nos a ver outros tantos cães, envelhecidos, galgos ex-corredores, que vivem num “reformatório”, em Hersham (Inglaterra). Condenados a uma existência sem donos, são seres cuja verdade se confunde com a pura espera da morte. Que a fotografia eternize a sua espera, eis o que resume a utopia mais louca que aqui se encena: face à morte, somos todos aristocratas.