domingo, agosto 05, 2007

A arte da lamentação

Os cantos de lamentação foram uma arte com expressão no final da Idade Média. Na sua essência estas canções são simples elegias, lamentando a perda de entes queridos ou reflectindo sobre amores impossíveis. A dor é expressa de forma amplificada, o sofrimento sugerido pelo jogo de palavras, pela música que as acolhe e a forma de as cantar. Os cantores dedicados a esta forma musical eram uma espécie de elite no seu tempo, correspondendo de resto o seu trabalho a um domínio igualmente restrito de ouvintes. Estas canções escutavam-se essencialmente entre homens (as mulheres presentes sendo, habitualmente, apenas cortesãs ou prostitutas). Deste ambiente aflorava uma atmosfera que permitia aos autores e intérpretes uma a expressão de certa fragilidade na exposição dos sentimentos, pouco habitual em contexto social misto. Eram exigidas certas qualidades vocais aos intérpretes, nomeadamente uma boa dicção e capacidade em trabalhar a ornamentação. Nem todos os timbres eram aceites. As sessões de canto requeriam ainda a construção gradual de um ambiente de progressiva entrega emocional, rumo a um clímax partilhado entre cantores e espectadores. Juntos, lamentando a perda, recuperando memórias, às vezes convocando mesmo certas presenças místicas invulgares.

Gilles de Bins (à esquerda na imagem), também conhecido como Binchois (1400-1460), de origem belga, não só foi um dos mestres nesta arte como um dos mais reconhecidos (e bem sucedidos) compositores da primeira metade do século XV, dividindo aí o protagonismo com Guillaume Dufay. Filho de uma família de classe média, estudou música, cantou em coros, prestou serviço militar e crê-se que tenha visitado Inglaterra antes de se juntar à corte de Borgonha, onde encontrou trabalho e notoriedade. Hoje é reconhecido pelo melodismo de um repertório ainda hoje capaz de seduzir o ouvinte. E este disco é disso um claro exemplo. A interpretação cabe ao colectivo belga, Graindelavoix, formado em 1999 por Björn Schmelzer, e cujo trabalho tem abordado frequentemente os espaços da chamada música antiga. Muito do seu trabalho acontece num terreno de interpretação no qual as anotações musicais escritas são um ponto de partida para um conjunto de reflexões que o grupo conduz no sentido de se descobrir na música que interpreta. Joye não só é um espantoso conjunto de canções ainda hoje capazes de arrebatar qualquer espectador, como vem acompanhado por um magnífico ensaio de Björn Schmelzer que não só contextualiza historicamente esta música como apresenta, um a um, os poemas depois cantados.