terça-feira, julho 10, 2007

Pós-Live Earth: a demagogia

* Hoje em dia, a globalização é a globalização de tudo.
* E amplia tudo: o acaso e a estupidez, a vida e a morte.
* E até mesmo a demagogia de todos os puristas de todos os quadrantes.
* Por vezes, é chocante verificar que nem mesmo os mais sérios, exigentes e competentes jornais do mundo se mostram imunes a tais facilidades.
* Aconteceu, agora, com algumas reacções de jornais ingleses ao Live Earth, nomeadamente títulos de referência como The Guardian e The Independent.
* De facto, é impressionante verificar como tais jornais se dão ao trabalho de gastar imenso espaço e argumentação (?) para provar que alguém como Madonna se está a contradizer... dando uso ao seu jacto particular e, por isso, matando um pouco mais o nosso planeta.
* Nada que não tenhamos já ouvido vindo dos EUA: também aí, os mais imaginativos (?) acharam que uma boa maneira de desmontar o discurso político de Al Gore era falar da poluição provocada pelas suas deslocações aéreas...
* (Não foi dito, mas estamos em crer que os jornalistas mais indignados, tanto do Reino Unido como dos EUA, sempre que têm de atravessar o Atlântico por razões profissionais, se deslocam a nado...)
* Há mesmo um patético artigo de The Independent, assinado por Jonathan Owen, que termina com uma lista de conselhos práticos para uma Madonna que se queira mais ecológica — a diatribe jornalística (?) vai ao ponto de esclarecer que, na sua "Confessions Tour", os jactos utilizados por Madonna lançaram na atmosfera nada mais nada menos que 440 toneladas de carbono.
* É pena que Jonathan Owen não nos esclareça qual o seu programa para reduzir as emissões do seu próprio país, um dos mais poluentes da Europa, com 580 milhões de toneladas de dióxido de carbono lançados na atmosfera do seu/nosso querido planeta (segundo dados da Energy Information Association, referentes a 2004). Isto, convém esclarecer, tendo em conta unicamente a poluição proveniente de combustíveis fósseis...
* Que Madonna não se distraia, porque esta polícia mediática do ambiente vai estar atenta: não na próxima, mas daqui a mais algumas tournées de seis meses — apenas 1.300.000, para sermos exactos —, aí a "Material Girl" estará em estado de puro diabolismo porque será tão poluente como o Reino Unido!!!
* De facto, é espantoso:
— o problema da poluição pode ser remetido para o arranque da Revolução Industrial, há mais de 150 anos (por sinal, em terras britânicas);
— as actividades poluentes aumentaram de forma preocupante ao longo das últimas décadas;
— tudo isso depende de opções económicas (e políticas) de fundo que, de um modo ou de outro, afectam todas as nações do mundo, sem excepção...
E ainda há quem perca tempo (e nos faça perder tempo) a tentar ridicularizar os "Al Gores" e "Madonnas" deste mundo que, mesmo que nos possam suscitar as maiores — e sempre legítimas — discordâncias, optam por não escolher o silêncio nem favorecer a indiferença.
* A sustentar tudo isto está um primaríssimo discurso individualista. Consiste tal discurso em rasurar todas as referências à imensa complexidade conjuntural (ecológica, económica, comunicacional, etc., etc.) em que vivemos, para problematizar (?) os nossos dramas — e até os nossos medos — a partir de personalidades públicas que são escolhidas como bodes expiatórios. Para quê? Para tentar legitimar discursos simplistas, pueris e irresponsáveis que, em última instância, renegam a primeira vocação do jornalismo: ver e dar a ver, isto é, tentar compreender e tentar fazer compreender. It's hard work, you know?