Francis Bacon
Oedipus and the Sphinx after Ingres, 1983
(Colecção Berardo)
1. BERARDO VERSUS MEGA FERREIRA. Creio que ainda há cidadãos portugueses que, apesar do esforço de alguma informação (?) televisiva, não reagem de forma divertida ou sarcástica perante a "polémica" Joe Berardo / António Mega Ferreira. Eu sou um deles: sinto-me apenas incomodado pela dimensão mediática que tal conflito adquiriu.
2. NENHUMA EQUIDISTÂNCIA. Não sei, aliás, se é uma verdadeira polémica (e daí as aspas). Não tenho sequer a pretensão de me poder colocar numa qualquer posição de equidistância intelectual ou afectiva: por um lado, não tenho qualquer relação com Joe Berardo; por outro, conheço há muitos anos António Mega Ferreira e sinto-me honrado de, por várias vezes, ter trabalhado a seu lado ou mesmo para iniciativas por ele concebidas (inclusivé no Centro Cultural de Belém).
3. A ARTE. Nada me seduz no discurso de Joe Berardo nem nas ideias que o parecem sustentar. E digo "parecem", já que a sua óbvia dificuldade de expressão em português implica que lhe demos um permanente benefício da dúvida (e sem que isso justifique, a meu ver, algumas formas mais caricaturais de abordagem da sua figura e personalidade). Em todo o caso, nada disso me impede de reconhecer duas coisas muito básicas: primeiro, que a sua colecção de arte constitui um inestimável património; segundo, que a sua pessoa merece todo o reconhecimento oficial pela exposição pública dessa mesma colecção.
4. DOIS LUGARES-COMUNS. Escapam-me também as motivações da tensão que se instalou nas relações entre Joe Berardo e António Mega Ferreira. Pelos (poucos) dados divulgados (por Berardo), tal tensão parece depender de alguns factores eminentemente pessoais e, para ser completamente sincero, nada disso motiva o meu interesse. Sei, isso sim, que a "polémica" já gerou o retorno de um lugar-comum que, infelizmente, a ideologia televisiva dominante exponenciou de modo tradicionalmente histérico. Aliás, não é um — são dois lugares-comuns. Assim, de um lado, teríamos o homem "simples" e "puro", mais ou menos conotado com o "povo" (Berardo, of course); do outro, perfilar-se-ia essa coisa "abstrusa" e "maléfica" que dá pelo nome de "intelectual" (Mega Ferreira e, por extensão, todos os que com ele se atrevam a partilhar algum grão de sensibilidade).
5. A PALAVRA INTELECTUAL. Joe Berardo, há que reconhecê-lo, não é sujeito passivo neste processo: foi ele que repôs a circular a palavra intelectual, emprestando-lhe uma conotação negativa que, como o próprio certamente já terá reconhecido, nunca assenta bem num defensor de objectos artísticos e ideais de cultura. Mas quero acreditar que se tratou de um passo precipitado: Berardo tentava apenas dar conta do seu (legítimo) juízo negativo sobre Mega Ferreira, eventualmente considerando-o "incapaz" ou "desastrado". No momento preciso, ter-lhe-á faltado uma dessas belas e acutilantes palavras portuguesas que possuem a genuína vantagem de poder definir uma personalidade, seja ela de um criador artístico ou de um homem de negócios, de um descendente do povo ou de uma figura das elites.
6. DA SAÚDE MEDIÁTICA. Daí a pequena, mas incontornável, herança deste episódio. Ou seja: a bem da Fundação Berardo e do Centro Cultural de Belém, será bom que esta agitação desemboque em alguma forma de equilíbrio e, sobretudo, de gestão. E, já agora, a bem da sanidade mental do universo mediático português (que, às vezes, parece sugar o país todo...), creio que todos — a começar pelo comendador Joe Berardo — temos a perder com a nova demonização da palavra intelectual.
7. “SOU UM INTELECTUAL.” Por mim, aceito ser discutido em função das minhas ideias, mas resistirei sempre a ser julgado a partir do meu estatuto. Com todo o respeito que me suscitam as práticas dos Alcoólicos Anónimos, não quero ter de começar uma intervenção pública, falada ou por escrito, declarando: “Sou um intelectual e o meu nome é João Lopes."