terça-feira, junho 19, 2007

Filmar na intimidade da morte

Texto publicado no Diário de Notícias (17 de Junho), com o título 'Um filme para olhar a morte de frente' >>> Na noite de sexta para sábado, logo após essa magnífica série que é Irmãos e Irmãs, a RTP2 passou um espantoso e perturbante documentário: chama-se EXIT – O Direito de Morrer (2005), tem realização de Fernand Melgar, e centra-se na actividade da EXIT A.D.M.D. (“Associação pelo Direito de Morrer com Dignidade”), organização suíça que trabalha na assistência a pessoas que decidem praticar a eutanásia.
Embora não podendo deixar de saudar o simples facto de a RTP difundir um filme tão sério e radical, torna-se inevitável repetir um desabafo de puro desencanto: porque é que a televisão pública investe tanto tempo e dinheiro a celebrar produtos de mero populismo e, quando tem um objecto deste género, nada faz para, no mínimo, o expor com algum empenho? Aliás, o facto de, na véspera, ter estreado nas salas de cinema um filme sobre os suicidas da Golden Gate de São Francisco (A Ponte, de Eric Steel), conferia a EXIT – O Direito de Morrer uma ainda maior actualidade mediática.
Fernand Melgar filmou a actividade diária dos membros da EXIT. A existência da associação decorre do facto de a legislação da Suíça estabelecer condições para que um cidadão consciente possa, em determinadas situações, escolher as condições da sua própria morte, praticando o chamado suicídio assistido. Não se trata, entenda-se, de utilizar o documentário para cair numa dessas gritarias de “prós & contras” que transformam qualquer discussão do direito de opção de cada indivíduo num pueril combate de boxe. Trata-se, isso sim, de mergulhar numa dupla intimidade: primeiro, a daqueles que, vivendo uma existência de terríveis agonias, afirmam o seu direito de morrer; depois, a dos membros da EXIT e do seu envolvimento (profissional e emocional) com os que decidem praticar o suicídio assistido.
EXIT – O Direito de Morrer não é um filme “panfletário”. É, isso sim, um filme que afirma uma das mais primitivas virtudes das imagens cinematográficas (e televisivas): a sua singularidade começa no simples facto de uma câmara poder aceder aos espaços mais remotos da vida privada, não para os reduzir a ruínas simbólicas, antes para compreender a imensa e contraditória pulsação de vida que os habita. Nesta perspectiva, o filme de Fernand Melgar constitui também uma metódica e inteligentíssima demarcação em relação à barbárie dominante da reality TV.
De facto, hoje em dia, da reality TV à publicidade, somos bombardeados com discursos (e imagens, muitas imagens) que nos querem fazer crer que a nossa realização pessoal depende de uma espécie de “tributo” que prestamos à histeria consumista. Ora, EXIT – O Direito de Morrer vem afirmar a simples, mas essencial, dignidade das escolhas individuais. E sem simplificar a infinita complexidade de cada trajecto individual.
Por exemplo, Fernand Melgar filma uma das pessoas que quer praticar o suicídio assistido e que, como todas as outras, deve redigir à mão um documento em que afirma a sua escolha. Devido à sua condição física, a escrita desse documento prolonga-se por várias sessões, ao longo de mais de um ano. Paradoxo? Sem dúvida: olhando a morte de frente, este é um filme de pura exaltação da vida.